O Estelita e a outra linha do tempo

Foto: Eric Gomes

 

Ativistas do Recife voltam a protestar nesta quinta, enquanto questionam o modelo de participação pública no projeto urbano da cidade

Eram centenas de pessoas, a maior parte delas demarcadas por uma pele claramente-classe-média. Em qualquer outro dia, seriam todas bem-vindas ao maior e mais imponente shopping center de Recife, o Rio Mar. Dessa vez, não. Pois elas agora carregavam elementos incomuns à etiqueta do local: traziam faixas, cartazes e palavras de ordem: “Ocupar! Resistir!” Ocupar aquele espaço. E simultaneamente resistir a ele. Eis as novas leituras do grito mais conhecido do #OcupeEstelita, um movimento de direto à cidade que ficou conhecido nacionalmente em 2014 e que agora ganha novos contornos políticos, com mira específica no prefeito do Recife, Geraldo Júlio (PSB), dada a aprovação do Projeto de Lei 008/2015 contra o qual o movimento combate desde o dia zero.

Foto: Marcelo Soares

Fala-se aqui do chamado Projeto Novo Recife, um conjunto de 13 edifícios gigantes que pode, muito em breve, destruir uma paisagem icônica da capital pernambucana, bem como causar um impacto ambiental de proporções desastrosas para a bacia do Pina, impedir a ventilação de um bairro inteiro do Recife, piorar exponencialmente o trânsito já travado da região, e tudo isso sem mencionar o fator mais agravante de todos: de que esse “Novo” Recife é uma cidade onde, tal qual o Shopping RioMar, é de bom tom entrar pagando o tíquete de estacionamento.

Foto: Eric Gomes

Na última segunda-feira (4), a Câmara Municipal convocou, de última hora, uma audiência para aprovar o PL 008/2015, indo de encontro a uma recomendação feita pelo Ministério Público de que este precisaria ser discutido no Conselho da Cidade (frisando que ele é o órgão competente para tomar essa decisão) antes de chegar à pauta da Câmara. Os poucos vereadores que faziam oposição ao projeto se recusaram a votar e eis que o “plano urbanístico” desenhado pelo Consórcio Novo Recife, formado pelas empreiteiras Queiroz Galvão (envolvida até o pescoço na operação Lava Jato), Moura Dubeux (que loteou a cidade nesses últimos anos e “investiu” R$ 550 mil na campanha do prefeito Geraldo Júlio), mais a Ara Empreendimentos e a GL Empreendimentos, foi aprovado. Poucas horas depois, enquanto manifestantes do Movimento Ocupe Estelita ainda estavam em frente à Câmara sob a vigília de um batalhão de choque da PM já enfileirado, o prefeito do PSB, Geraldo Júlio, que se encontrava em São Paulo, sancionava o PL com uma velocidade pouco comum.

O que nos traz de volta ao rolezão pelo Recife que o Movimento Ocupe Estelita promoveu na noite da terça (5), saindo da Câmara Municipal, espaço público que se privatizou (o presidente da Casa, o vereador Vicente André Gomes (PSB) ordenou o fechamento dos portões ainda no horário de expediente dos vereadores, proibindo a população de entrar até mesmo no estacionamento do local), até o já citado shopping, espaço privado que simula uma convivência pública. Artur Maia, estudante de Direito da Universidade Federal de Pernambuco, comandava o jogral pontuado e ecoado pelos manifestantes em alto volume pelo RioMar: “Nós lutamos. Por uma cidade. Democrática. Uma cidade. Que não segrega. E por isso. Estamos neste shopping. Porque este shopping. Representa. A segregação.” Palmas de um lado. Olhares acuados de outro. O RioMar, construído por cima de uma comunidade de pescadores da região, é hoje o cartão postal do mesmo Recife-Miami que reverencia o projeto Novo Recife. O impacto simbólico de tal ação não iria passar batido.

A resposta veio na forma de uma nota oficial divulgada pela Prefeitura do Recife na manhã da quarta (6). No texto, a prefeitura declara que houve um “amplo debate com os diferentes segmentos da sociedade” para que o dito projeto fosse sancionado. E logo depois apresenta uma Linha do Tempo aparentemente bem formosa e democrática com todas as audiências públicas realizadas ao longo do último ano. Afinal, houve “amplo debate”.

 

Foto: Eric Gomes

E eis onde este texto, de fato, começa. Com a colaboração de membros do grupo Direitos Urbanos do Recife (DU), bem como do próprio Movimento Ocupe Estelita (MOE), fui checar os dados dessa Linha do Tempo que espelha bem um fictício modelo de participação pública que, não à toa, terminou culminando num grito de “vocês precisam escutar o que temos a falar” no meio de um shopping center. Sigamos:


A prefeitura diz: “17/07/2014 — Realização da audiência pública sobre as diretrizes urbanística. Foram colhidas 283 contribuições, 85% delas apresentaram propostas detalhadas sobre o tema”

No dia 17 de julho de 2014, exatamente um mês após o Choque da PM ter violentamente feito a reintegração de posse do terreno no Cais José Estelita, onde os ativistas do #OcupeEstelita estavam acampados, essa audiência pública acontece em um cenário completamente desfavorável à população. Foi dado à sociedade civil um prazo de apenas duas semanas para o envio das propostas para ocupação urbana da região. A triagem dessas contribuições foi feita pelo Consórcio Novo Recife, sendo a alteração do projeto mediada pela própria parte interessada, e não pelo poder público. As “283 contribuições” citadas pela prefeitura se tornaram invisíveis, pois a proposta final ficou sendo praticamente o que já havia sido apresentado anteriormente. Ou seja, foi um espaço que teve grande participação da população, mas essa participação foi solenemente ignorada.


A prefeitura diz: “10/09/2014 — Apresentação das diretrizes urbanísticas à imprensa a partir de consolidação do trabalho realizado na audiência do dia 17 de julho”

Quase dois meses após a audiência pública com a apresentação de propostas para a área, a prefeitura convoca um encontro com a grande imprensa. O Movimento Ocupe Estelita, que participou ativamente no envio das mais de 280 contribuições apresentadas na audiência do dia 17/07, não foi convidado para essa festa que os homens armaram. Na verdade, soube-se por acaso dessa coletiva. Militantes do Ocupe Estelita tentaram entrar nesse encontro e o acesso ao prédio da prefeitura foi barrado por guardas municipais. Mas o que mudava, então, no redesenho do Novo Recife? Ele reduziu um pouco a altura de alguns edifícios do projeto original (onde antes haveria prédios de até 46 andares, agora poderá haver prédios de até 40, ufa!), incorporou minimamente o uso misto de alguns edifícios mas, em contrapartida, aumentou o número de prédios no local.


A prefeitura diz: “14/11/2014–1ª reunião sobre o plano urbanístico dentro do Conselho da Cidade”

Essa reunião foi realizada graças à mobilização das organizações da sociedade civil que, obtendo assinaturas de mais de 1/3 das entidades conselheiras (como previsto no artigo 16 da Lei do Conselho da Cidade nº 18.013/14), conseguiram convocar reunião extraordinária. Nela, movimentos sociais, ONGs, sindicatos e entidades profissionais, acadêmicas e de pesquisas apontavam para a necessidade de discussões acerca do Projeto Novo Recife e da realização do Plano Urbanístico Específico para a área do Cais José Estelita, Cais de Santa Rita e Cabanga, como previsto no Plano Diretor. A prefeitura do Recife, no espírito democrático, defendia a posição de que o Projeto Novo Recife estava aprovado e não seria matéria de competência do Conselho.


A prefeitura diz: “27/11/2014 — Audiência Pública de Apresentação do Redesenho do Projeto Novo Recife tomando por base as diretrizes estabelecidas”

Essa audiência foi feita num espaço privado, cercada por seguranças privados, e não continha sequer a logomarca da Prefeitura do Recife. Nela, havia nove telas de LED fazendo publicidade do Consórcio Novo Recife, bancadas pelo dinheiro público. Houve momentos em que o secretário de Desenvolvimento e Planejamento do Recife, Antônio Alexandre, deixou a mesa enquanto pessoas da sociedade se manifestavam. Não houve sistematização da audiência.


A prefeitura diz: “30/01/2015–2ª reunião sobre o plano urbanístico dentro do Conselho da Cidade”.

“Foram apresentadas três versões diferentes do texto do projeto de lei. A primeira versão continha a exigência de habitação de interesse social e de elaboração de Plano de Massas, além da lista dos IEP’s e outros itens, fatores que foram eliminados nas versões posteriores. A Gestão Municipal, mesmo sem apresentar estudos e sem ter promovido a devida discussão, queria aprovar uma versão do texto. Após debate, se aprovou uma Reunião da Câmara Técnica de Planejamento Urbano e Territorial, quando o técnico responsável apresentaria estudos e levantamentos que embasassem a elaboração do PL.

A prefeitura se esquece de dizer: 12/02/2015: A reunião que deveria ser da “Câmara Técnica de Planejamento Urbano e Territorial” foi conduzida pelo Secretário de Desenvolvimento e Planejamento, Antônio Alexandre. Essa condução foi contestada pelo grupo de Direitos Urbanos (DU), pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU), pelo Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), pelo Centro Dom Helder Camara de Estudos e Ação Social (CENDHEC) e pela Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), que cobraram a identificação do “técnico responsável”. O secretário afirmou que o PL havia sido elaborado por um “grupo de técnicos” e apresentou o arquiteto Fernando Alcântara (Instituto Pelópidas da Silveira) como responsável por responder aos questionamentos. Seguiram-se várias questões, às quais nem o técnico em questão, nem representantes das secretarias presentes responderam adequadamente. Fernando Alcântara chegou mesmo a dizer que “ninguém era obrigado a saber de tudo”. Pelo contrário, ficou reafirmado a inexistência dos estudos e de outros elementos que poderiam caracterizar a elaboração de um Plano Urbanístico.


A prefeitura diz: “19/02/2015 — Audiência Pública do Projeto de Lei do Plano Específico para o Cais de Santa Rita, Cais José Estelita e Cabanga.”

Essa audiência estava propositalmente esvaziada, convocada em plena quinta-feira de pós-Carnaval, ela contou com a presença da Prefeitura, do grupo Direitos Urbanos e da CAU como expositores. A prefeitura, representada pelo Secretário Antônio Alexandre, repetiu basicamente as apresentações anteriores. Os demais expositores e intervenções apontaram a inexistência de um Plano Urbanístico, a ausência de apresentação dos estudos e a restrição da participação popular em uma audiência realizada logo após o Carnaval.


A prefeitura diz: “06/03/2015–3ª reunião sobre o plano urbanístico dentro do Conselho da Cidade.”

A intenção da prefeitura era aprovar o plano urbanístico nessa reunião, mas como alguns conselheiros pediram vistas de minuta, a votação foi adiada para o dia 19.


A prefeitura diz: “19/03/2015–4ª reunião sobre o plano urbanístico dentro do Conselho da Cidade (a matéria foi votada e aprovada)”

Em desacordo com o plano apresentado, várias instituições (IAB, DU, MDU, Cendhec, Diaconia, Fundaj), se retiraram da reunião, não sendo possível haver quórum para aprovação. A CAU permaneceu, mas se recusou a votar. Ainda assim, a votação ocorreu e essa aprovação, sem quórum, não deveria ter seguido adiante. Naturalmente, não foi o que aconteceu.


A prefeitura diz: “23/03/2015 — Início da tramitação do Projeto de Lei nº 008/2015 na Câmara Municipal. O material ficou 45 dias sendo apreciado pelos vereadores e nas Comissões de Legislação e Justiça, Finanças e Orçamento, Meio Ambiente Trânsito e Transportes e de Obras e Planejamento Urbano, obtendo parecer favorável em todas elas.”

Sobre essa tramitação interna, vale ressaltar que as várias instituições que participaram das audiências públicas entre 2014 e 2015 condenaram o projeto pela: inexistência de um estudo prévio de impacto ambiental ou de estudo de impacto da vizinhança. A lembrar que o projeto foi aprovado sem os pareceres obrigatórios do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) e Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT).


A prefeitura diz: “10/04/2015 — Audiência Pública convocada pela Câmara Municipal (liderança do governo) sobre o Projeto de Lei nº 008/2015.”

A mesa dessa audiência foi composta pelo Iphan, IAB, CAU, a Secretaria de Planejamento, o Instituto Pelópidas da Silveira e coordenada pelo líder do governo na Câmara, vereador Gilberto Alves. CAU e IAB reafirmaram a posição de que o PL não refletia as exigências de um Plano Urbanístico e o Iphan pontuou que tal matéria estava sob análise do órgão em âmbito nacional. As intervenções seguiram na linha de questionar o PL e exigir a preservação da memória e da paisagem, a provisão de habitação de interesse social e comércio popular na área, e de adequação do PL aos parâmetros estabelecidos pelo Plano Diretor. Do outro lado, mais uma vez, ouvidos de mercador.


A prefeitura diz: “04/05/2015 — O Projeto de Lei nº 008/2015 foi votado e aprovado pela Câmara Municipal.”

O projeto foi votado extrapauta, com violação do direito à fala de vereadoras, com as portas da Câmara fechadas à grande parte da população, sem discussão das emendas e devida avaliação dos relatórios das comissões (Comissão de Meio Ambiente encaminhou relatório solicitando o retorno do PL ao Conselho da Cidade e apontando suas incongruências em relação ao exposto no Plano Diretor) e desacatando a solicitação de alguns vereadores de que o projeto fosse votado com tranquilidade e de forma aberta à população no dia posterior.

Em tempo: O artigo 22 do PL sancionado no último dia 4 de maio diz o seguinte: “Os projetos já aprovados na Zona 5, na Zona 8 e no Setor S-9b da Zona 9, poderão ser licenciados de acordo com a legislação vigente no ato de sua aprovação, podendo ser adequados à presente Lei mediante requerimento do proprietário, inclusive através de pedido de alteração durante a obra.” Leia-se: poderá, sim, haver “adequações” no projeto enviado. As brechas abertas por esse artigo 22 simplesmente enterram qualquer possibilidade de ter havido, algum dia, um “amplo debate” entre a Prefeitura do Recife e a sociedade.

Em palavras mais sucintas, o que a Prefeitura do Recife chama de “amplo debate” mais parece uma conversa entre a galinha e a raposa. A primeira pode argumentar, com todas as bases legais, em nome de sua sobrevivência. Se a segunda vai escutar é uma questão de improbabilidade.

 

Foto: Marcelo Soares

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