Por Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia
Já era adiantada a noite do dia 23 quando a Câmara dos Deputados aprovou o texto-base do novo marco fiscal. O texto foi idealizado pelo ministro da Fazenda Fernando Haddad e relatado/alterado pelo deputado federal Cláudio Cajado (PP-BA). Uma expressiva maioria formada por 372 deputados endossou a proposta, que agora segue para o Senado.
À esquerda e à direita muito está sendo dito sobre o assunto.
O marco fiscal é muito rígido a ponto de comprometer estruturalmente a capacidade de investimento do governo? É muito frouxo, colocando o equilíbrio fiscal do país em risco? De quem é a vitória na tramitação com tão larga vantagem? É de Arthur Lira? De Fernando Haddad? Do governo?
Como a política é território por excelência da disputa semântica, as respostas para as perguntas variam de acordo com as conveniências e interesses. Neste ensaio, desejo abordar aqueles que me parecem ser os dois significados possíveis da lei fiscal de Fernando Haddad. O projeto, agora transformado em Emenda Constitucional, diz muito sobre a crise democrática em curso no Brasil desde o golpe parlamentar de 2016.
Primeiro, é necessário deixar claro que na perspectiva da crônica política imediata, a aprovação do texto-base é, sim, vitória do governo e, particularmente, de Fernando Haddad. E uma vitória que não é nada pequena.
Longe de ter o carisma de Lula e Flávio Dino, Haddad começou sua trajetória no governo como o principal presidenciável. Não há dúvidas de que, pelo menos por enquanto, o plano A do PT para a sucessão de Lula é Fernando Haddad. E tem lógica a estratégia. Afinal, Haddad já foi candidato, é nacionalmente conhecido.
A favor do ministro conta, também, sua capacidade de circular em espaços políticos para além da esquerda e do PT. O próprio Lula já disse que Haddad é o mais “tucano entre os petistas”. No governo em que a articulação política se mostra desastrada, não deixa de auspicioso que o PT tenha em seus quadros alguém com tamanha capacidade de diálogo com diferentes forças.
Em menos de seis meses, Haddad conseguiu fazer algo que parecia impossível: apresentou um projeto para a Câmara dos Deputados e conseguiu aprovar um texto que é muito melhor do que Emenda Constitucional 95/2016, popularmente conhecida como “lei do teto de gastos”.
O “teto de gastos” paralisou o país, desestruturou os serviços públicos, e destruiu políticas sociais de segurança alimentar e habitação popular.
A lei do teto de gastos foi aprovada na Câmara dos Deputados em 10 e outubro de 2016, contando com o apoio de 366 parlamentares, praticamente a mesma base de aprovação do marco fiscal do Haddad. Eram os tempos do antipetismo visceral. A prisão de Lula já era dada como certa, o PT seria contundentemente derrotado nas eleições municipais que aconteceriam apenas 20 dias depois, em 30 de outubro.
A derrotada eleitoral de Haddad nas eleições municipais de São Paulo foi uma das mais humilhantes que se tem notícia. Não é normal ver um governante em exercício ser derrotado no primeiro turno ao tentar a reeleição. Não era difícil vaticinar a morte política do PT, de Haddad, de Lula.
Hoje, um pouco mais de seis anos depois, um governo petista chefiado por Lula e o Ministério da Fazenda comandada por Haddad conseguiram reverter o teto de gastos, colocando em seu lugar uma legislação muito mais favorável para ampliação dos direitos sociais dos brasileiros mais pobres.
Porém, na escala da média e longa temporalidade, a lei fiscal de Fernando Haddad é uma derrota conceitual, na medida em que consagra a tese do golpe parlamentar que derrubou Dilma Rousseff em 2016.
Certamente, o leitor e leitora se lembram que Dilma caiu, exatamente, porque teria desobedecido uma lei fiscal e autorizado gastos públicos à revelia do que ordenava a contabilidade liberal. A tese era muito clara: o Estado não pode investir para além dos limites autorizados pelo mercado. Em jogo estava a velha disputa pelo controle da riqueza nacional, pelo poder de planejar o futuro do país.
Quem detém a soberania? O Estado-Nação, conduzido por um governo democraticamente eleito, ou o mercado dominado pelo rentismo?
O golpe de 2016 marcou a vitória do mercado sobre o Estado. A nova lei fiscal consolida essa vitória.
Por mais que a nova lei fiscal represente um óbvio avanço em relação ao teto de gastos (seria desonesto dizer o contrário), o conceito permanece rigorosamente o mesmo. O Estado não controla mais a distribuição da riqueza produzida coletivamente. Esse poder está sob controle de interesses privados disfarçados de autoridade técnica, mas que são tão políticos como qualquer outro interesse.
Vitória no jogo político imediato e derrota conceitual nas disputas envolvendo a soberania do Estado nacional. Esse é o duplo significado da lei fiscal de Fernando Haddad.