O cinema ajuda a entender os perigos de Alexandre de Moraes

Nas últimas semanas, vimos o Brasil e os EUA ganharem potenciais novos juízes das cortes mais altas de seus respectivos sistemas judiciários. Por lá, no dia 1º de fevereiro, o presidente republicano Donald Trump apontou o juiz federal Neil Gorsuch, de 49 anos, para preencher a vaga deixada na Suprema Corte por Antonin Scalia, que faleceu em fevereiro de 2016. Bem antes da posse de Trump, o presidente Barack Obama havia feito sua própria indicação para o cargo, o democrata moderado Merrick Garland, mas ações dos republicanos no Congresso americano bloquearam e adiaram o processo de confirmação do candidato justamente para que Trump pudesse escolher outro.

Meros cinco dias depois, no Brasil, o presidente Michel Temer também fez sua escolha para o Supremo Tribunal Federal: seu próprio Ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, é o indicado para substituir Teori Zavascki, que morreu em um acidente de avião no dia 19 de janeiro. Moraes tem bastante em comum com Gorsuch, o candidato americano – ambos estão no final de seus 40 anos, e possuem um histórico de decisões conservadoras polêmicas em seu passado.

Neil Gorsuch

No caso de Gorsuch, trata-se de decisões como a do caso Hobby Lobby v. Sebelius (2013), em que defendeu o direito de uma loja de materiais artísticos de se recusar a prover anticoncepcionais para seus funcionários, sob a alegação de que seus donos, parte de uma tradicional família evangélica, tinham objeções religiosas à prática. Visto que o atual plano de saúde governamental americano, conhecido como ObamaCare, inclui a distribuição de anticoncepcionais, a decisão (mais tarde confirmada pela Suprema Corte) essencialmente permite que empresas e organizações particulares ajam contra práticas e decisões públicas caso elas infrinjam, de alguma forma, sua crença religiosa.

Embora no caso de Alexandre de Moraes não tenhamos tantas decisões judiciais para nos basearmos a fim de compreender suas opiniões, temos sua atuação em órgãos públicos e sua afiliação política. Ligado ao PSDB, o jurista foi Secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo, sob o governo de Geraldo Alckmin, entre janeiro/2015 e maio/2016, período em que a violência da Polícia Militar foi duramente criticada, frente a protestos de rua e ocupações de escolas. A Polícia de Moraes foi responsável por uma em cada quatro pessoas assassinadas no ano de 2015, em São Paulo, segundo dados levantados pela própria Rede Globo.

Em suma, o Brasil e os EUA acabaram de indicar dois homens perigosos para os mais altos cargos judiciários de seus respectivos governos – como a história (e o cinema) nos ensina, isso pode não acabar bem.

Wendell Pierce como Clarence Thomas e Kerry Washington como Anita Hill no filme Confirmation (2016)

Confirmação

Produzido em 2016 para comemorar os 25 anos de uma confirmação de Suprema Corte histórica nos EUA, o telefilme Confirmation é centrado na atriz Kerry Washington, conhecida por interpretar a impulsiva e brilhante Olivia Pope na série Scandal. Aqui, Washington entrega uma atuação precisa e comovente como Anita Hill, professora de direito que, após saber que seu ex-chefe, o juiz Clarence Thomas, havia sido indicado para a Suprema Corte dos EUA pelo então presidente George H.W. Bush, é procurada por representantes do Senado e relata que, no passado, havia sido sexualmente assediada por Thomas.

Hill trabalhou com Thomas em duas agências governamentais na administração Reagan, ambas direcionadas à diversidade no ambiente de trabalho. Em 1991, uma década depois dos alegados casos de assédio, Hill virou testemunha em uma série de audições polêmicas em que um grupo (todo masculino) de senadores considerou as acusações de assédio a fim de determinar se Thomas deveria ser bloqueado de servir na Suprema Corte. Os conselheiros próximos ao presidente Bush e os senadores republicanos então empreenderam uma verdadeira caça às

Os verdadeiros Clarence Thomas e Anita Hill, em 1991

bruxas, buscando difamar a reputação de Hill e sugerindo até que ela sofresse de erotomania, distúrbio que leva indivíduos a presumirem ou fantasiarem avanços sexuais daqueles a sua volta.

Confirmation, da forma que foi dirigido por Rick Famuiywa (do ótimo Dope) e escrito por Susannah Grant (indicada ao Oscar por Erin Brockovich), é uma envolvente mistura de fato e ficção ou conjectura, destrinchando a intimidade desses personagens sem perder de vista as questões que essencialmente aborda. O juiz Clarence Thomas eventualmente foi confirmado e serve na Suprema Corte dos EUA até hoje, mas a muito pública odisseia de Hill influenciou uma eleição americana (em 1992) que colocou um número recorde de mulheres no Senado, e praticamente obrigou o presidente Bush a passar novas leis de proteção à mulher no ambiente de trabalho.

Confirmation é um filme sobre assédio sexual, sim, e sobre o machismo que predomina em nossas instituições políticas e permite que ele aconteça, e que os acusados saiam sem punição nenhuma, com um cargo na mais alta corte dos EUA de presente. É também, no entanto, um conto de aviso perturbador sobre o quanto interesses políticos e mentiras estratégicas podem interferir em uma decisão que não deveria ser ideológica, mas puramente ética. Uma decisão que molda por exemplo e por efeito o futuro do país – nos momentos de caos que vivemos, é sempre bom realçar essa importância.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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