Por Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia
Recentemente, o termo “bolsonarismo” passou a fazer parte do vocabulário político brasileiro, estando diretamente associado à liderança do presidente Jair Bolsonaro. Mas o que pouca gente percebe é que o bolsonarismo não esgota as possibilidades políticas de Jair Bolsonaro. Ou em palavras mais diretas: bolsonarismo e Bolsonaro não são, necessariamente, a mesma coisa.
Explico.
Jair Bolsonaro faz parte da política brasileira há quase 30 anos. Vereador, deputado de baixo clero, presença constante em programas de auditório. Bolsonaro vem antes do bolsonarismo. Nesses tempos, existia Bolsonaro, sem ismo. Personagem caricato, defensor da ditadura militar e parlamentar inexpressivo.
Já o bolsonarismo é parte da crise democrática ainda em curso no Brasil. Herdeiro da Operação Lava-Jato, o bolsonarismo se constituiu como ideologia política pretensamente revolucionário cujo objetivo é superar o sistema político instituído pela carta de 1988. O bolsonarismo está fundado nos seguintes valores:
- Rejeição aos políticos profissionais e a afirmação do sistema político brasileiro como corrupto e corruptor, como a ordem que deve ser superada.
- Rejeição à concepção liberal de representação política. Na lógica bolsonarista, a representação política não é direito universal viabilizado pelas instituições democráticas. É algo a ser conquistado com o respeito a um conjunto de códigos morais. O cidadão político a ser representado é o homem branco armado, chefe de família que estabelece com o líder (também homem branco armado e chefe de família) relação direta de confiança. Aqui é o ponto de encontro do bolsonarismo com o machismo, racismo e homofobia estruturais que atravessam a história do Brasil.
- Apoio em frações das Forças Armadas, das polícias militares e de organizações paramilitares (as milícias). Com esse apoio, o bolsonarismo opera constantemente com a possibilidade da ruptura institucional armada.
- Rejeição a qualquer vocação assistencialista do Estado. O Estado de bem-estar social é visto como corruptor, pois na medida em que assiste os pobres estimularia o ócio, abrindo espaço para a manifestação de costumes morais libidinosos. É a famosa “acabou a mamata”. Está aqui o ponto de encontro do bolsonarismo com o neoliberalismo ortodoxo de Paulo Guedes.
Ainda precisamos entender melhor em qual momento Jair Bolsonaro se tornou bolsonarista. Como se deu o encontro da família Bolsonaro com os textos de Olavo de Carvalho? Quais são as principais referências do bolsonarismo? O integralismo da primeira metade do século XX? A tese do patrimonialismo, estruturante do pensamento social e político brasileiro? O neoconservadorismo norte-americano da segunda metade do século XX? Tudo isso junto?
Seja como for, algo aparece óbvio: Bolsonaro vem antes do bolsonarismo. Existe um Jair Bolsonaro que não é bolsonarista, que não tem total compromisso com a ideologia política bolsonarista. Um Bolsonaro pragmático, conhecedor das regras tácitas do jogo político, perfeitamente capaz de se adaptar ao sistema político que o bolsonarismo pretende implodir.
Penso que no atual momento do governo, estamos vendo em ação exatamente esse Bolsonaro. O Bolsonaro que não é bolsonarista.
Esse Bolsonaro que não é bolsonarista já tinha dado o ar da graça antes, em três ocasiões:
- Em julho de 2019, quando escolheu Augusto Aras a dedo para ser o seu PGR. Aras tinha missão muito mais complexa do que simplesmente blindar o governo. O objetivo maior era por fim à Operação Lava Jato, grande adversária de Bolsonaro no campo da extrema-direita e poderosa ameaça ao sistema político. Aras cumpriu a missão com eficiência, justificando sua recondução, agora, em julho de 2021.
- Outubro de 2020, com a indicação de kássio Nunes para ocupar a vaga de Celso de Mello no STF. A atuação de Nunes na suprema corte mostra como Bolsonaro conseguiu centralizar o seu ministro, garantindo sua lealdade.
- A interferência nas eleições para a mesa diretora da Câmara dos Deputados em fevereiro de 2021. Diferente do que fez Dilma Rousseff em fevereiro de 2015, Bolsonaro não tentou criar o seu presidente da Câmara, não tentou eleger um aliado ideológico direto, na marra. Identificou entre as candidaturas aquela que mais tinha horizonte de vitória e que era mais cooptável. Declarou apoio público e se aproximou do vencedor, antes da vitória. Teve senso de circunstâncias e com essa movimentação praticamente enterrou a possibilidade do impeachment.
O Bolsonaro pragmático, não bolsonarista, está se manifestando mais uma vez, ao trocar Luiz Eduardo Ramos por Ciro Nogueira no comando da Casa Civil.
Ao substituir um general pelo líder do centrão no comando do ministério politicamente mais importante, Bolsonaro sinaliza que não acredita ser possível sustentar um golpe militar.
Mostra que sabe a hora de recuar, de se adequar ao sistema, de ser mais pragmático e menos ideológico. Bolsonaro mostra que não é totalmente bolsonarista, que também é parte do sistema.