ARTIGO
Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia
Que as eleições presidenciais de 2018 não correram dentro da normalidade, todos sabemos. Afinal, não é normal que um deputado que durante quase 30 anos foi piada nacional, presença cativa em programas de auditório e folhetins de humor, se torne presidente do país que tem a décima maior economia do mundo.
No começo do mandato, havia duas possibilidades:
1°) Bolsonaro seria um presidente de direita normal, como outro qualquer, respeitador dos ritos e disposto a governar por dentro das instituições.
2°) Bolsonaro continuaria se alimentando da energia disruptiva liberada em 2013, colando nas instituições estabelecidas a pecha da “velha política”.
Bolsonaro decidiu preservar sua identidade política e a lealdade de sua base orgânica. Essa foi sua escolha e é em função dela que seu governo deve ser analisado.
Vai funcionar? Essa base orgânica é grande o suficiente pra sustentar um governo que abriu guerra contra o Congresso Nacional, contra o STF e contra sua própria base parlamentar? As eleições municipais do ano que vem dirão algo a respeito disso. Qualquer coisa que falarmos agora não passará de especulação e torcida.
Por enquanto, é possível dizer que Bolsonaro é, ao mesmo tempo, fraco e forte. Sua fraqueza é a fonte de sua força.
Fraco como presidente e forte como agitador fascista. Na minha percepção, essa é a síntese da liderança política de Bolsonaro.
A cada manifestação, Bolsonaro violenta os ritos fundamentais para o cargo que ocupa, mas ao mesmo tempo, e exatamente por isso, mobiliza sua base orgânica, formada por pessoas sem o menor compromisso com a institucionalidade vigente.
No momento em que escrevo este texto, a esquerda está debochando dos dois últimos lances de marketing político operados por Bolsonaro: o vídeo do leão e as hienas, publicado na fanpage do presidente em 27 de outubro, e a gravação ao vivo de 29 de outubro, feita durante viagem oficial aos Emirados Árabes.
O deboche é o resultado da combinação entre incompreensão e prepotência. Na política, poucos gestos são mais imprudentes do que a incompreensão e a prepotência.
Incompreensão porque parte da esquerda ainda insiste em tratar Bolsonaro como louco, aloprado, sem entender a natureza da energia política que constitui o bolsonarismo.
Bolsonaro é o Coringa, é a personificação de uma sociedade que se percebe como colapsada, que despreza qualquer tipo de mediação institucional.
Aquilo que muitos de nós consideramos ser loucura e burrice, talvez seja performance política.
Prepotência porque a esquerda ainda está convencida de que seus padrões de gosto e comportamento são universais. Para nós, a figura de Bolsonaro é detestável, grotesca.
Quantos brasileiros realmente se incomodam com uma piada sobre o tamanho do pinto de japonês ou com um comentário sobre a beleza de primeira dama de país vizinho?
O Brasil não é regido pelos mesmos valores que compartilhamos no nosso cotidiano, nas diversas faculdades de ciências humanas espalhadas pelo Brasil. É óbvio, é mais que óbvio. É tão óbvio que nem precisava ser dito.
Ouço companheiros e companheiras animados com rodas de hip hop, com movimentos sociais de afirmação identitária, com saraus de poesia, blocos de maractu, vendo nessas práticas indícios de uma futura redenção. “Centelhas de uma nova onda revolucionária”, como costuma dizer Vladmir Safatle. Não nego que seja algo confortável de se ouvir.
A esquerda torce a realidade pra fazer caber no desejo. Nisso, os velhos conservadores (Tocqueville, Burke, Möser), têm muito a nos ensinar: pensar no plano justo, coladinho na realidade.
Enfim.
Fato, fato mesmo é que, de acordo com a estratégia traçada, o plano de Bolsonaro vem sendo bem executado. Com o vídeo do leão e as hienas, foi reforçada a narrativa fundada em 2013: instituições corrompidas representando a “velha política” cercam o leão moralizador.
STF, direita tradicional, esquerda, imprensa hegemônica contra o felino majestoso destemido.
Acho clichê, ridículo, cafona. Você, leitor e leitora deste veículo de esquerda que me publica, provavelmente concordam comigo. Mas tem muita gente aplaudindo, muita gente mesmo. Basta sair da bolha e olhar. Recomendo que voltem rápido, para o bem de sua saúde mental.
Em uma ‘live’ de 23 minutos, Bolsonaro desqualificou a imprensa hegemônica, o governador do Rio de Janeiro (potencial adversário em 2022), se apresentou como pai e marido ofendido pela perseguição que os derrotados nas urnas movem contra sua família.
Bolsonaro não falou como presidente. Falou como o patriarca que sai em defesa do clã. É o tipo de coisa que cola mais que velcro em uma sociedade com baixa educação institucional e profundamente privatista nas relações sociais.
A ‘live’ foi um sucesso. Fez exatamente o que queria fazer.
Bolsonaro vinculou a Globo, que “diariamente corrompe moralmente a sociedade brasileira com suas minisséries e novelas”, ao PT, “que corrompeu a nação ao assaltar os cofres públicos”. Aí estão os dois conceitos de corrupção que constituem a semântica da crise institucional em curso no Brasil.
Bolsonaro ameaçou rever o regime de concessão dos direitos de comunicação social. Até bem pouco tempo atrás, essa era uma agenda da esquerda, que jamais foi tocada pelos governos petistas.
Bolsonaro ainda falou do Adélio e da “poderosa conspiração que tentou matá-lo”, e performatizou o mártir, o esfaqueado, na tentativa de esvaziar Marielle Franco, sem dúvida o principal símbolo da esquerda brasileira contemporânea.
Bolsonaro bateu na mesa, xingou palavrão, exalou carisma. Terminou pedindo desculpas pelo excesso. Retórica! Ele sabe perfeitamente que o excesso é seu principal capital político.
Se estou dizendo que Bolsonaro é carismático? Sim, estou dizendo exatamente isso. Em política, carisma é, fundamentalmente, a capacidade de afetar o outro pela produção de identidade. Bolsonaro representa perfeitamente o brasileiro médio.
Fraco como presidente, mas forte como agitador fascista. Em situação de normalidade institucional, essa seria a fórmula do obituário político. Em tempos normais, Bolsonaro ainda seria deputado de baixo clero.
Definitivamente, não vivemos em tempos normais.
Uma resposta
Essa parcela de adoradores tende a reduzir!