A Nova Rota da Boa Esperança e a Paz na Ucrânia

por Paulo Nogueira Batista Jr.

Querido, leitor ou leitora, brasileiro ou brasileira, quero voltar hoje a um tema que acredito seja de grande interesse para nós: o papel mundial que está, acredito, reservado a nosso imenso País. Repare que estou me dirigindo expressamente aos brasileiros. Se houver, por acaso, algum membro da notória quinta-coluna extraviado por aqui, peço gentilmente que se retire.

Abordei diversas vezes, em 2021 e 2022, o tema ao qual quero voltar. O que eu disse, mais do que isso, profetizei foi que se não cometêssemos o desatino de reeleger o então presidente da República e, num acesso de lucidez, elegêssemos Lula, o Brasil poderia não só se recuperar como nação, mas também contribuir de forma decisiva para recuperar o planeta inteiro. Publiquei vários artigos, remeto a dois deles: “Brasil, país-planeta ou (Saudades do futuro)”, 26 de julho de 2021; e “A Rota da Boa Esperança”, 9 de agosto de 2021.

Corro o risco de ser repetitivo hoje, bem sei, mas só os inocentes não entendem o quanto é fundamental repetir, repetir e repetir. Como dizia Nelson Rodrigues – um brasileiro que tinha, aliás, noção da grandeza do Brasil – o que é dito uma vez, e uma única vez, permanece rigorosamente inédito.

Extravagâncias e sonhos, românticos e realistas

As crônicas que escrevi, as entrevistas e palestras que dei, nos últimos dois anos, pareciam extravagantes e sonhadores, eu mesmo achava isso. Mas duas coisas, leitor ou leitora. Primeira, nenhum país alcançou influência internacional, para bem e para mal, sem o sentimento messiânico de que tem a capacidade de trazer uma palavra nova ao mundo. E, convenhamos, só os românticos mudam as coisas. Como dizia Fernando Pessoa, por palavras parecidas (estou citando de memória), os realistas podem ser excelentes diretores de fábricas de pregos, ou coisa parecida, mas só os românticos, os sonhadores, os emotivos movem montanhas.

Aí temos uma dificuldade. Os brasileiros são pragmáticos, um dos povos mais pragmáticos que conheci na vida. Pior: os brasileiros nem sempre estão à altura do Brasil. “Nem sempre” é concessão minha. Melhor dizer: “raramente”. E deixo à inteligência e sensibilidade do leitor ou leitora desvendar essa distinção paradoxal entre “Brasil” e “brasileiros” – distinção que remonta a De Gaulle, que já separava a “França” dos “franceses”.

Segunda coisa: na campanha, depois da eleição e depois da posse, Lula deu repetidas indicações de que entende perfeitamente o seu papel global. Nem preciso recapitulá-las, estão aí à vista de todos. Isso mostra que o projeto nacional brasileiro deve ser, também, um projeto universal. E, com Lula, tem chances reais de acontecer.

Dostoievski

Essas minhas reflexões messiânicas sobre o Brasil remontam, em parte, a Dostoievski que, no século 19, profetizou corretamente que a Rússia estava destinada a trazer uma palavra nova para o mundo e influir decisivamente no curso da história mundial. Foi o já citado Nelson Rodrigues, aliás, que chamou atenção para essa parte da obra de Dostoievski. Por exemplo, para o maravilhoso discurso de 1880 sobre outro gênio russo, Pushkin, mobilizado por Dostoievski para falar da grandeza da Rússia, num discurso arrebatado e comovente que levou o país inteiro às lágrimas. Há uma semelhança entre a Rússia e o Brasil, percebida por diversos brasileiros desde o século passado: são dois países grandes, imensos na verdade, porém relativamente atrasados e, talvez por isso mesmo, capazes de perceber o que os países ricos, acomodados na sua riqueza e nos seus privilégios, dominados pelo egoísmo e por um racionalismo estreito e estéril, sempre têm dificuldade de sentir: a unidade essencial da humanidade e a necessidade de construir um projeto que inclua todos, sem exceção, projeto baseado não apenas na razão, mas também e sobretudo no coração.

Desde então, fiquei pensando: quem seria o Dostoievski brasileiro? O próprio Nelson Rodrigues? Poderia ter sido. O nosso grande dramaturgo e cronista nasceu, entretanto, na época errada. Quando ele chegou ao seu auge criativo como cronista, nos anos 1960 e 1970, o Brasil vivia sob uma ditadura militar, rejeitada em grande parte do mundo. Mas, depois, pensei melhor: talvez o nosso Dostoievski não venha a ser um artista, um escritor, mas um político. E quem seria esse político senão o próprio Lula?

Lula, Brasil e o vácuo de lideranças

Não quero sobrecarregar o nosso Lula com tarefas sobre-humanas e, possivelmente, um pouco exageradas. Mas observe, leitor ou leitora, se ele não está atuando exatamente em linha com o que acabo de escrever. E uma pergunta: inteligente como é, ele não percebe que empenhar-se no campo internacional é um instrumento poderoso para vencer as grandes resistências internas à transformação do Brasil num país justo e dinâmico? O vira-latismo arraigado das nossas camadas ricas e privilegiadas vai servir, finalmente, para alguma coisa!

Já imagino o que dirá alguém que for mais cético, mais realista: “Mas isso tudo não passa de delírio! O Brasil e o Lula não estão com essa bola toda!”. Ah, leitor ou leitora, mas não é exatamente pelo delírio que se chega à essência das coisas?

Explico melhor. Lula não chegaria nem na esquina, mesmo com todas as suas extraordinárias qualidades, mesmo com toda sua vasta experiência, inclusive de sofrimento e perseguição, se ele fosse apenas o grande líder de um país pequeno. Seria, na melhor das hipóteses, um Pepe Mujica, figura excepcional, mas sem repercussão fora da América Latina. O que nos abre uma oportunidade sem precedentes na nossa história é a conjunção Brasil gigante com Lula gigante. Isso numa quadra da história mundial em que há uma aguda escassez de lideranças políticas. No Ocidente, o vácuo é impressionante. Não quero destratar ninguém, mas Biden? Scholz? Macron? Sunak? (desse eu tive que buscar o nome na internet…). No Oriente, há líderes fortes, até impressionantes, Putin, Xi Jinping, Modi, com pouca aceitação internacional, entretanto, principalmente o primeiro, mas os outros dois também, por motivos variados. Já Lula trafega por todas as áreas.  

Paz na Ucrânia

Confirmando de novo o que eu previ mais de uma vez, nos dois últimos anos, Lula começou a se posicionar como possível mediador para a solução da guerra na Ucrânia. O vira-latismo nacional está uivando em grande estilo e não falta quem considere descabida e até ridícula a intenção do presidente da República. É verdade, claro, que mediação só haverá se e quando os envolvidos na guerra, direta ou indiretamente, estiverem interessados nisso. Mas Lula prepara o terreno e já explicou, em linhas gerais, que pretende ajudar a criar um grupo de países amigos ou neutros que possam fazer uma ponte entre as partes em conflito. Ele não mencionou, até onde sei, mas imagino que esse grupo poderia incluir, além do Brasil, a Turquia, Israel, a China, a Índia, a Indonésia e a África do Sul, por exemplo. 

Bem sei que não há perspectivas de solução a curto prazo. Como subestimar a gravidade da situação? A Rússia considera que vive uma ameaça existencial. O Ocidente, principalmente os Estados Unidos, considera que a sua hegemonia e autoridade mundiais foram postas em xeque pela invasão da Ucrânia.

No entanto, a paz nunca está fora do alcance. Como lembrou a ex-presidente Dilma Rousseff, em entrevista a Léo Attuch do 247, no ano passado, uma guerra que não pode ser resolvida no campo de batalha, tem que ser resolvida pela via diplomática. E a chave para uma solução, disse ela com razão, é encontrar uma fórmula que possa ser apresentada como vitória por todos ou quase todos os lados em guerra. Difícil? Sempre. Não impossível, porém.

Arrisco esboçar alguns elementos do que seria, no meu modesto entender, uma possível solução diplomática, que contentaria em alguma medida todos ou quase todos os envolvidos. Considere, leitor, o que segue apenas como um exemplo do que poderia ser construído.

A Rússia retiraria todas as suas tropas das regiões da Ucrânia, Donbass e outras, invadidas desde 2021. Abandonaria, ipso facto, o seu reconhecimento das repúblicas separatistas no Leste da Ucrânia. Antes, porém, a Ucrânia aprovaria, refletindo a diversidade do país, uma reforma constitucional que a converteria de república unitária em república federativa, em linha com as promessas feitas nos acordos de Minsk, de 2014 e 2015. Todas as províncias da Ucrânia, inclusive em especial as preponderantemente russófonas, Lugansk e Donetsk, teriam autonomia relativa e o direito de eleger seus governadores (até hoje sempre indicados por Kiev) e suas assembleias estaduais. A língua russa seria estabelecida ou restabelecida como língua nacional, junto com o ucraniano e talvez outras faladas no país, assegurando-se total liberdade de publicação, ensino e comunicação em russo. Ficaria com a Rússia, a Crimeia, de maioria esmagadoramente russa, e que foi incorporada ao país em 2014, depois de referendo em que mais de 93% votaram pela incorporação. A Ucrânia e o Ocidente assumiriam o compromisso de não buscar a admissão da Ucrânia na OTAN, mas ela poderia, cumpridos os exigentes requisitos europeus, entrar para a União Europeia em algum momento futuro. Seria talvez necessário incluir, também, um compromisso de desnazificação da Ucrânia, há bastante tempo infestada por grupos violentos de extrema-direita muito envolvidos na escalada que levou à guerra. Os ocidentais suspenderiam as sanções contra a Rússia à medida que os acordos fossem cumpridos e descongelariam as reservas internacionais russas que foram bloqueadas em represália à invasão da Ucrânia. A Rússia se comprometeria, por sua vez, a ajudar na reconstrução da Ucrânia que é, afinal, uma nação irmã, do mesmo espaço histórico e cultural, e que só por uma sucessão tenebrosa de equívocos e maquinações foi levada a essa guerra, lamentável como todas.

Viável? Talvez. O Ocidente se declararia vitorioso uma vez que a Rússia, forçada a abandonar seu suposto projeto expansionista, teria retirado todas as suas tropas, aceitaria eventual ingresso da Ucrânia na União Europeia e, ainda, ajudaria na reconstrução do país. A Rússia se declararia vitoriosa também: obteria o reconhecimento da Crimeia como russa, a autonomia das populações russófonas no Leste da Ucrânia, o fim das sanções, a não entrada da Ucrânia na OTAN e um compromisso de desnazificação do vizinho.

Não sei nada dos detalhes, ou mesmo das linhas gerais, do que está sendo cogitado em Brasília a esse respeito. Mas acredito que Lula, junto com outros líderes de países mediadores, poderá, sim, ter um papel no encerramento da guerra, aproveitando inclusive a circunstância feliz de que o Brasil presidirá o G20 em 2024, foro de líderes que, como se sabe, inclui os principais países desenvolvidos e emergentes. Todos os países acima mencionados como possíveis participantes de um esforço de mediação fazem parte do G20, com exceção de Israel. Lula inclusive já transmitiu a Macron o seu desejo de que o G20 volte a ser um grupo político em que os líderes se reúnam para discutir face-a-face, em conjunto, os desafios do planeta, deixando de ser o que tem sido, há muitos anos – um grupo meio esvaziado em que as responsabilidades e discussões foram terceirizadas a burocratas dos países-membros.

A Nova Rota da Boa Esperança

Quem, a essa altura, ainda não percebeu a influência internacional do nosso presidente da República é provavelmente um caso perdido e pode, quem sabe?, parar de ler aqui mesmo (se é que chegou até aqui). Quanto à grandeza do Brasil, lembro apenas, pela enésima vez, que o nosso País é um de cinco países – apenas cinco – que integra ao mesmo tempo as listas dos dez maiores países do mundo por território, por população e por PIB – os Estados Unidos e os quatro BRICS originais, Brasil, Rússia, Índia e China. Em cooperação com outros países emergentes e em desenvolvimento, da América Latina e do Caribe, da África, da Ásia – e mantendo, ademais, boas relações com o Ocidente – o Brasil tem todas as condições de mudar o curso da história mundial.

Saturnino Braga apresentou, em 2019, uma proposta muito interessante que eu depois detalhei um pouco. Em vez de simplesmente participar da Nova Rota da Seda, importante iniciativa da China, não deveria o Brasil organizar a sua própria iniciativa internacional? E retomar o espírito das grandes navegações portuguesas, espírito do qual hoje o Brasil, mais do que Portugal, tem condições de ser o herdeiro? Seria “A Nova Rota da Boa Esperança”, um projeto ambicioso que poderia incendiar a imaginação e desatar energias. Nele, o Brasil, cooperaria com outros países da América Latina, do Caribe, da Europa, da África e da Ásia para lançar um conjunto articulado de projetos e programas nas áreas de infraestrutura, clima e desenvolvimento social. (A ideia está mais desenvolvida no artigo acima mencionado, “A Rota da Boa Esperança”.) Poderia ser combinada, também, com outra proposta, que surgiu no ano passado: a formação de um G3, que incluiria Brasil, Congo e Indonésia – os três países detentores das maiores florestas tropicais do mundo – para articular uma visão do Sul global sobre a crise climática, em aliança com os seus vizinhos na América do Sul, na África no Sudeste Asiático que compartilham as florestas tropicais.

Para colocar esse projeto em marcha o Brasil mobilizaria o Itamaraty, as nossas embaixadas mundo afora, o BNDES, a Petrobrás, a Embrapa, a Finep, as empreiteiras nacionais, o Banco dos BRICS, entre outras entidades. Precisaríamos atuar em grande escala e de forma inovadora e ambiciosa, lançando mão da criatividade e capacidade de trabalho dos brasileiros. Isso exige muito de nós? Requer sacrifícios? Sem dúvida. Invoco, de novo, Fernando Pessoa, que no poema “Mar Português”, lembrou: “Quem quer passar além do Bojador/ Tem que passar além da dor./ Deus ao mar o perigo e o abismo deu/ Mas nele é que espelhou o céu.”

O Brasil, para ser ele mesmo e cumprir o seu destino planetário, tem que manter a cabeça erguida, olhar longe e pensar grande.

O técnico da seleção não pode resolver tudo

Claro que haverá, até independentemente de qualquer projeto ambicioso como esse, dificuldades enormes pela nossa frente. Não se deve perder de vista que o presidente é o técnico da seleção nacional. Os jogadores – os ministros e os presidentes dos bancos públicos – têm que rise to the occasion, jogar bem, lutar com brilho nos olhos, entrar em bola dividida. Não podem ficar esperando que o técnico venha a campo para atacar, ir à linha de fundo, bater escanteio, cabecear, cobrar pênalti.

Os ministros da Fazenda, do Planejamento, da Indústria e Comércio, das Relações Exteriores, o presidente do Banco Central (estou sonhando alto!), o presidente do BNDES, o presidente do Banco dos BRICS (provavelmente a ex-presidente Dilma) e outros integrantes do primeiro escalão – todos eles têm um papel fundamental na atuação do Brasil. Nem todos, porém, dão mostras de que compreendem o potencial mundial do País. O ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, e o assessor do Presidente, Celso Amorim, assim como a ex-presidente Dilma, devo ressalvar, conhecem todos esses desafios em profundidade, ainda que caiba ao primeiro lidar com o “tucanismo” arraigado de uma ala do Itamaraty, mais problemática do que a minoritária ala bolsonarista da casa.

Com isso, chegamos ao segundo escalão, que tem mais peso do que geralmente se imagina. Refiro-me, por exemplo, aos secretários de assuntos internacionais da Fazenda, do Planejamento e da Indústria e Comércio, aos diretores de assuntos internacionais do Banco Central e do BNDES, aos diretores executivos brasileiros em órgãos como FMI, Banco Mundial, BID e à representação brasileira em entidades financeiras regionais, como a CAF e o Fonplata. Idealmente, esses postos seriam ocupados por brasileiros e brasileiras, competentes, dedicados e dispostos a sacrifícios – excluídos, claro, os numerosos quinta-colunistas que infestam o País e mesmo o governo.

Em resumo, todas essas pessoas, tanto no primeiro como no segundo escalão, têm que estar unidos num propósito comum – colocar a máquina brasileira em funcionamento de novo.

Não esqueci, leitor, que há uma condição sine qua non para todos esses planos internacionais – recolocar o Brasil, sem demora, numa trajetória de desenvolvimento com distribuição de renda e combate à pobreza. Caso contrário, por melhores que possam ser os planos, o País será o proverbial gigante de pés de barro.

Mas isso é assunto para outro artigo.

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Uma versão resumida deste artigo foi publicada na revista “Carta Capital”.

O autor é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015. Lançou no final de 2019, pela editora LeYa, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguémbastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata. A segunda edição, atualizada e ampliada, começou a circular em março de 2021.

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