Em um encontro com militantes de esquerda e parlamentares eleitos, no ano passado (quando a eleição de 2022 ainda parecia algo longínquo), alguém comentou sobre como a política de Pernambuco estava prestes a se tornar um “House of Cards”, em referência ao thriller norte-americano sobre o congressista Francis Underwood e sua esposa, Claire, que fazem de tudo e passam por cima de todos para subir na vida pública, não importa o que aconteça. Ganância, desespero pelo poder e ambição descontrolada são a praxe no dia a dia deles na capital Washington. Em solo pernambucano, não é diferente.
Por Igor Zahir, dos Jornalistas Livres em Pernambuco
Para entender o que está acontecendo na política pernambucana em 2022, é necessário tomar conhecimento de dois pontos distintos, que costuram todos os outros fatos acontecidos no último ano. Primeiro: desde 2006, quando Eduardo Campos foi eleito para o Palácio do Campo das Princesas, o PSB detém o poder no Estado. Com inegável experiência em campanhas bem-sucedidas, o partido aposta no deputado federal Danilo Cabral para continuar este legado que já dura 16 anos. O segundo ponto é justamente o que ameaça tais planos: do outro lado está Marília Arraes, que rompeu com o PT e tem causado um verdadeiro furacão por onde passa, como candidata pelo Solidariedade.
Em 2018, quando a ainda vereadora Marília já almejava a candidatura ao governo de Pernambuco, seu nome foi retirado do pleito, após um acordo entre PT e PSB visando ao apoio à reeleição do então governador, Paulo Câmara. Rifada pelo partido, como diz a militância que a apoia (enquanto outra parte rejeita o termo “rifada”), ela entrou na disputa por uma vaga na Câmara Federal e venceu com um resultado expressivo (mais de 193 mil votos), sendo a segunda parlamentar mais votada do Estado, atrás apenas do primo, João Campos – filho de Eduardo.
Corta para 2020: candidata a prefeita com bons números nas pesquisas, Marília e seu postulante a vice-prefeito, João Arnaldo (Psol), conquistaram o apoio de uma ala do PT, embora outro bloco, mais ligado ao PSB, defendesse que não houvesse candidatura própria dos petistas, mantendo a harmonia entre os dois partidos. Em um segundo turno acirrado, Marília foi derrotada nas urnas pelo primo João Campos (PSB).
“Nunca coloque-se à mercê de decisões dos outros. Tome a iniciativa. Se não gosta de como a mesa está posta, vire a mesa“ – House of Cards.
No jogo de cartas para a eleição deste ano, a aliança entre PT e PSB prevaleceu mais uma vez: o senador Humberto Costa (PT) abriu mão da candidatura ao governo a fim de apoiar Danilo Cabral, indicado pelo governador Paulo Câmara. O que se diz nos bastidores há muito tempo é que Costa e Marília não tinham um bom relacionamento, e como o senador é tido como a pessoa que controla o partido, o nome de Marília, em ascensão para a vaga do Senado que seria do PT, foi preterido, e o do deputado federal Carlos Veras veio à tona. Em seguida, surgiu também o da deputada estadual Teresa Leitão, em seu quinto mandato consecutivo na Alepe e aspirante à Câmara de Deputados em Brasília.
“Decisões têm consequências. Indecisões, mais ainda” – House of Cards
Entre dirigentes e membros da cúpula petista, o que se afirma é que Marília nunca foi rifada, ao contrário: sempre foi tratada com tapete vermelho, tendo seus caprichos e exigências atendidos e o nome respeitado. Após demonstrações públicas (por ambas as partes) de desconforto com a indecisão sobre o Senado, tanto Carlos Veras quanto Teresa Leitão chegaram a retirar seus nomes para beneficiar o de Marília, e (dizem) houve até um pedido de Lula para que ela aceitasse ser sua senadora. Mas era tarde: a neta de Arraes, que já havia conquistado uma legião de fãs nesse vai e vem, estava de malas prontas para sair do PT.
Enquanto Marília negociava os termos de sua filiação ao Solidariedade, dentro do Partido dos Trabalhadores o impasse pela vaga à Casa Alta continuava entre os nomes de Veras e Teresa. Ele, em seu primeiro mandato, conhecido pela defesa aos agricultores e, mais recentemente, compadre de Lula – quando o candidato à presidência e sua esposa, Janja, vieram para Recife em julho passado, batizaram os filhos de Veras -, além de ser um nome promissor da ala ligada a Humberto. Teresa, veterana entre os deputados estaduais, carrega a forte admiração de professores e pedagogos, tendo sido ela própria fundadora e presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Pernambuco (Sintepe). Esse público é sempre responsável por boa parte dos votos que a elegem, e também pela militância que bateu o pé junto à executiva estadual para que ela se concretizasse como a escolhida para a vaga.
Atendendo a um pedido do candidato petista, que a convenceu pessoalmente a aceitar tamanho desafio, Teresa afirma por onde passa: vai ser a primeira mulher senadora de Pernambuco, a senadora de Lula. Considerando os números das pesquisas (e também a recusa de Armando Monteiro Neto e Mendonça Filho, dois componentes fortes nas especulações ao Senado), a simpática professora de 70 anos, que segue um ritmo extenuante de compromissos nos quatro cantos do Estado durante os sete dias da semana, pode, de fato, sair vitoriosa.
“Quando você está negociando, ofereça o que você pode. Então depois, volte e peça mais” – House of Cards.
No Solidariedade, Marília, que até então seguia em disparada como preferida para o Senado, bate o pé com um plano ainda mais ambicioso. Coloca seu nome para governadora, mesmo que para isso precise trazer para o seu lado personagens que, até então, soariam muito controversos para uma defensora de Lula: o de Sebastião Oliveira (Avante) para vice e André de Paula (PSD) como senador.
Vale dizer que em meio a tudo isso, há uma ascensão de outros partidos de esquerda, ainda que acabem como coadjuvantes desta eleição – o Psol, por exemplo, fechou com a Rede e segue na tentativa de aumentar suas cadeiras na Assembleia Legislativa, que hoje conta apenas com o mandato coletivo das Juntas, colocando na disputa nomes fortes, como dos vereadores Dani Portela e Ivan Moraes Filho. A federação Psol-Rede apoia Lula para presidente, embora se recuse a qualquer acordo com o PSB, que consideram na pessoa de Paulo Câmara a pior gestão que o povo pernambucano já teve.
A disputa pelo palanque de Lula, aliás, é algo que chama atenção. Na série de compromissos que ele cumpriu pessoalmente em julho, deixou claro que seu único candidato ao governo é Danilo Cabral. Os defensores de Marília, no entanto, dizem que esse apoio dele é apenas por um protocolo da aliança entre PT e PSB – e não titubearam em ocupar os atos organizados pelos pessebistas para vaiar as falas de Danilo, Humberto Costa e João Campos.
“Marilhou”
É assim que os seguidores e eleitores de Marília Arraes definem o efeito que ela causa entre petistas dissidentes que se recusaram a seguir a orientação de apoiar Danilo Cabral, e a defendem com garra e afinco. Dirigentes, vereadores e outros políticos eleitos chegaram a ser expulsos do partido por isso, ao criarem o movimento “oPTei por Marília”. É inegável que houve, sim, uma caça às bruxas que não é eficaz ao pensar que, num suposto segundo turno entre Marília e outro nome que não seja o de Danilo Cabral (apesar de Raquel Lyra, Miguel Coelho e Anderson Ferreira oscilarem entre empates técnicos nas pesquisas, o de Ferreira ganha força pelos eleitores bolsonaristas), o presidente Lula certamente não poderia se dar ao luxo de negar seu apoio à candidata do Solidariedade.
Do outro lado, petistas levantam um ponto curioso: o de que a neta de Arraes, ao causar indiretamente esse atrito, estaria sendo a principal provocadora de um antipetismo que, para mentes mais radicais, anda lado a lado numa linha tênue com o antilulismo, o que pode beneficiar o candidato bolsonarista.
“Se você quer ganhar minha lealdade, ofereça algo em troca. Evite as guerras que você não pode ganhar e nunca levante uma bandeira por uma causa estúpida” – House of Cards
Miguel, Raquel e Anderson por vezes até passam Danilo nas pesquisas, e apesar deste último ser um dos protagonistas desta eleição na tentativa de garantir a hegemonia do PSB e de Ferreira ser o nome do palanque de Bolsonaro, cada um dos outros candidatos ou de seus partidos, tenta garantir seu lugar ao sol. A decisão de Luciano Bivar de retirar sua candidatura à presidência para apoiar Lula, por exemplo, mexe com várias peças no jogo do União Brasil. Houve um burburinho de que ele seria indicado ao Senado, o que colocaria em xeque a pré-candidatura de Teresa Leitão – o que não aconteceu. Prego batido e ponta virada, como se diz no Nordeste, Bivar vai tentar sua reeleição como deputado federal.
Isso abalou a expectativa do partido de Miguel Coelho de eleger apenas dois deputados federais, que seriam os ex-ministros Mendonça Filho e Fernando Filho. Com a decisão de Bivar, um rearranjo foi necessário para eleger três nomes à Câmara, e candidatos que disputariam a eleição para deputado estadual foram obrigados a ir para federal, a exemplo do ex-apresentador Dilson Oliveira, figura popular em Caruaru, no Agreste do Estado. Com nome dado como certo para a Alepe, ele e outros novos políticos passam a servir de “cauda” para o União Brasil chegar ao coeficiente necessário para eleger mais um deputado, que seria Bivar.
Como nada passa despercebido pela patrulha de trolagem da internet, vários memes surgiram em torno desse apoio do União Brasil a Lula, pelo fato de ser o mesmo partido de Sérgio Moro, o ex-juiz que, como se sabe, utilizou a Operação Lava Jato como um projeto político e pessoal para arquitetar a prisão de Lula e arranca-lo do jogo na eleição anterior.
No fim das contas, se formos pensar na eleição deste ano, a frase de “House of Cards” que mais se adequa seria a que diz que “o caminho até o poder é pavimentado de hipocrisia”. Ou talvez aquela outra: “Para aqueles de nós escalando até o topo da cadeia alimentar, não pode haver misericórdia. Só há uma regra: cace ou seja caçado.”