Natal na quebrada

Bem-vindos e bem-vindas ao “Café com muriçoca” - espaço de compartilhamento literário dos Jornalistas Livres. O texto de hoje, "Natal na quebrada", de Dinha, reflete sobre a noite de Natal em tempos de fome e outras violações de direito.
Natal na quebrada
Composição com desenho de Sara Mota

Sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus, mesmo, se vier, que venha armado.

João Guimarães Rosa – Grande Sertão: Veredas

“O todo poderoso/ É aquele que domina a terra/ E nesse inferno/ Se Deus vier que venha armado!”

Pavilhão 9

“Mas nesse Natal,  era tanta tensão que até o menino Jesus,  prevenido, desceu armado.  Lá foi ele gingando,  a pele preta,  olhar duro e sorriso compreensivo,  meigo. Tava pronto para ser crucificado,  mas antes levaria uns dez bandidos pra casa. Dimas era só o começo.” 

Minha janela é um portal. Por ela eu contato mundos além do meu cômodo, que é quarto e escritório – às vezes ninho de amor, onde um pássaro mudo pousa e vai me alertando a temperatura da vida. Ele me explica o quanto de fogo é preciso para que uma panela exploda, vazia.

Na quebrada,  o passarinho me disse, tem panela vazia e gente de saco cheio. Até o papai Noel encheu o saco e saiu chutando portas, gritando com os filhos e distribuindo socos em qualquer ser que lhe olhasse meio torto. Esse aí eu mesmo ouvi. Nem precisei  do meu amigo pássaro,  um pouco fofoqueiro, me contar. 

No dia seguinte,  o bom velhinho sumiu. Disseram que,  no debate,  seu argumento não coube.

Minha janela é um portal
Composição com desenho de Sara Mota

Mas nesse Natal,  era tanta tensão que até o menino Jesus,  prevenido, desceu armado.  Lá foi ele gingando,  a pele preta,  olhar duro e sorriso compreensivo,  meigo. Tava pronto para ser crucificado,  mas antes levaria uns dez bandidos pra casa. Dimas era só o começo. 

O passarinho me contou que havia ódio e um breve alívio misturado com corote, cocaína e crack. Que quando essa brisa passasse era vizinha brigando a torto e a direito,  porque seu sapato virou bolsa e as calcinhas desapareceram do varal.

Também,  no Natal,  teve pólvora. Ela assustou os cães, os gatos e os ratos cinzentos que  vinham caçando brechas pra comer nossos olhos e carne de ave barata – a que faltou o ano todo. Mas que, no Natal teve.

Então as pessoas beberam, fumaram, comeram, namoraram e se lembraram de desligar as panelas de pressão. 

Só o pobre do papai Noel é que se deu mal, porque até o menino Jesus  foi bem recebido nos lares.

Ele comeu, bebeu, dançou e,  ao raiar do dia, guardou sua peça e se mocozou no barraco da tia. 

Dormiu até a quaresma acabar.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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