Não há fundamentação científica para a chamada “cura” gay

Homossexualidade não é doença

Em 1973, a Associação Americana de Psiquiatria retirou a homossexualidade da sua lista de transtornos. Em 1980, foi a vez do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) retirá-la. Finalmente, em 1990, ela foi retirada da lista de doenças da Organização Mundial de Saúde (OMS). A Classificação Internacional de Doenças (CID) posicionou-se, em 1998, contra “qualquer tratamento psiquiátrico de ‘reparação’ ou ‘conversão'” de gays.

Porém, em 2017, um grupo de psicólogos no Brasil recebeu permissão judicial para praticar “atendimentos profissionais, de forma reservada, pertinentes à (re) orientação sexual” (trecho da decisão do juiz Waldemar Cláudio de Carvalho). Tal decisão desconsidera todos os atuais consensos científicos em relação ao tema. Se você quiser conhecer os argumentos técnicos da Psicologia e da Psiquiatria para uma crítica bem fundamentada à “cura” gay, esse texto pode lhe ser útil. Vamos lá!

No que os defensores da “cura” gay acreditam? Eles pensam que os psicólogos, se fossem autorizados, teriam a capacidade de mudar a orientação sexual de alguém. E que só não o fazem porque estão sendo impedidos por razões ideológicas.

Porém, a verdade não é essa. Mesmo que quisessem, os psicólogos não teriam como mudar a orientação sexual de ninguém. Sendo uma complexa combinação de fatores biológicos, psicológicos e sociais, o fato é que a orientação sexual, uma vez constituída, não é passível reversões. Daí porque não falamos mais em “opção” e sim em orientação sexual: porque desejar alguém, seja ou não do sexo oposto, não é uma escolha do indivíduo. É uma intrincada determinação biopsicossocial que ocorre nos primeiros anos de vida.

A única coisa que nós, profissionais da saúde mental, conseguimos fazer é que as pessoas consigam conviver melhor com seus próprios desejos, sejam eles quais forem. E isso não é pouco pois tende a diminuir enormemente o sofrimento, o que acontece sem qualquer mudança estrutural na orientação sexual do paciente.

Resumindo é o seguinte: é um consenso internacional que a homossexualidade não é uma doença. Então está simplesmente equivocado oferecer “tratamento” para algo que não é doença.

Histórico das tentativas de “cura” gay

Até o final da década de 80, a literatura especializada apresentava uma quantidade considerável de estudos que tentavam mostrar a possibilidade de se mudar a orientação sexual de alguém. Gradualmente, porém, esses estudos foram diminuindo em número até praticamente desaparecerem nos dias de hoje (sim, juiz Waldemar, hoje quase ninguém faz pesquisas sérias sobre esse assunto). Atualmente, a maioria das “pesquisas” e organizações que defendem a “cura” gay estão fora das instituições científicas da Psicologia e da Psiquiatria, sendo mais igrejas e instituições confessionais.

Basicamente, existem dois tipos de terapias de reorientação sexual: as terapias aversivas e as terapias reparativas ou de conversão. As primeiras foram mais comuns na década de 70 e início dos anos 80 e consistiam no uso de choques eletroconvulsivos, injeção de drogas para induzir náusea e vômitos, uso de estímulos angustiantes, sugestão hipnótica, etc. A ideia era associar essas sensações negativas com estimulação sexual homossexual. Por exemplo: colocam um homossexual diante de um filme gay e injetam drogas para induzir vômitos ou tontura. Quem já viu o filme “Laranja Mecânica” sabe mais ou menos como são essas “terapias”. O personagem principal passa por um processo desses na tentativa de “curá-lo” de seus impulsos violentos.

Ao longo do tempo, por óbvias razões éticas, as terapias aversivas foram sendo substituídas pelas reparativas. Nestas últimas, as “técnicas” utilizadas (se é que podemos chamar isso de técnicas) são: oração, conversão religiosa, aconselhamento individual ou em grupo, grupos de pares.

O pressuposto dessas práticas é o seguinte: independentemente da complexidade da constituição da sexualidade humana, os comportamentos sexuais (os atos em si, as ações) são dependentes da vontade da pessoa e, portanto, estão sujeitos à avaliação moral. E, portanto, um indivíduo que julgasse seus próprios desejos como errados, poderia se forçar a agir de modo diferente.

Porém, a gigantesca maioria das pesquisas mais modernas tendem a achar que isso não é possível, ou seja, que não existe a possibilidade de se reverter a orientação sexual de alguém.

De acordo com uma pesquisa que analisou as terapias de reorientação sexual nos últimos 50 anos1, de modo muito sintomático, menos de 30% desses estudos faziam referência a alguma teoria psicológica e 61% deles não dispunham de taxas de desistência do processo ou taxas de retorno ao comportamento homossexual. Ou seja, a maioria dessas pesquisas não fizeram um acompanhamento ao longo do tempo para saber se a suposta “cura” se sustenta no longo prazo.

Se fizessem esse acompanhamento, veriam que muitos abandonam o “tratamento” e que a maioria das pessoas que se diz “curada” retorna a comportamentos homossexuais depois de um período. Justamente porque a orientação sexual não é reversível!

Para essas terapias, o sinal da “cura” seria a pessoa parar de se engajar em ações que envolvam a interação sexual com pessoas do mesmo sexo. Contudo, orientação sexual não é definida apenas de maneira comportamental. Existem pensamentos, fantasias e emoções que são também estruturas definidoras da orientação sexual de alguém.

Assim, forçando muito a barra, o que essas terapias de reorientação sexual fazem não é reverter a homossexualidade em heterossexualidade. Elas simplesmente reprimem a expressão de comportamentos homossexuais. Mas os pensamentos (pelo menos os inconscientes), fantasias e emoções não mudam. Ao associar a homossexualidade a coisas negativas, essas terapias não conseguem reconduzir a sexualidade homossexual de alguém para a heterossexualidade. Elas apenas reprimem aquela sexualidade, que é homossexual e sempre será, reprimida ou não.

Mas sabemos o que acontece com a saúde mental de alguém quando se sufoca sua sexualidade. Como Freud nos aponta, se reprimirmos nossa sexualidade ela reaparecerá transformada em um sintoma de um transtorno mental. Em 2002, uma pesquisa2 de larga escala entrevistou 202 pessoas que passaram por algum tipo de terapia de reorientação sexual. Destas 23 tentaram o suicídio durante a conversão e 11 após o “tratamento”. Muitas relataram que os efeitos negativos pioravam quando os terapeutas ou pastores as diziam que elas tinham escolhido a homossexualidade.

A pesquisa ainda identificou que vários participantes relataram depressão, queda da autoestima, aparecimento de imagens mentais intrusivas no pós-tratamento, impotência e até afastamento dos familiares. Isso porque muitos disseram que nesses tratamentos eles eram persuadidos de que supostas falhas nos cuidados que receberam de seus pais podem ter sido as causas de sua homossexualidade, o que é outra enorme besteira psicológica. Muitos relataram também isolamento social (pois queriam esconder que ainda eram homossexuais), perda da capacidade para relacionamentos de longo prazo e perda da fé.

Apenas 13% relatou algum benefício da terapia, sendo que somente 4% relataram que se transformaram em heterossexuais. Os outros 9% ainda lutam com seus desejos em relação a pessoas do mesmo sexo ou tornaram-se em celibatários (ou seja, para deixarem de ser gays, eles tiveram que abrir mão de sua sexualidade como um todo).   

Como conclusão, as pesquisas de revisão dos estudos sobre “cura” gay atestaram que: 1) eles têm graves falhas metodológicas; 2) não têm fundamentação teórica; 3) violavam princípios éticos e direitos humanos; 4) não só não funcionavam como também fazem muito mal para os que se submetem a elas.

Mathias Vaiano Glens é psicólogo formado pela USP e mestre pela mesma universidade. Atualmente, trabalha no Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo, é professor de Psicologia na FMU e atua como psicólogo clínico no consultório particular. (Twitter: @GlensMathias)

 

Notas

1 A Systematic Review of the Research Base on Sexual Reorientation Therapies (https://therapistlocator.net/imis15/Documents/Board/j.1752-0606.2008.00065.x.pdf)

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