“Não foi troca de tiro não…”, foi execução

um ano da chacina da Gamboa de Baixo sem punição para os PM’s.

por Franklim Peixinho [1]

Foram três jovens negros assassinados no dia 01/03/2022, na comunidade soteropolitana da Gamboa de Baixo.

Quase um ano depois, em fevereiro deste ano, a comunidade da Gamboa de Baixo, na praia em frente ao bar de Ana Caminha, se organizava para saudar Yemanjá, arrumando os balaios com presentes e ancorando os barcos, que levariam os Ogans, com atabaques e  o gan, a Ialorixá responsável pelas oferendas, e demais devotos das águas.

Yemanjá é mãe, e sabe a dor daquelas mães da Gamboa. Mulheres que tiveram seus filhos executados pela polícia baiana.

“Lamento às Águas”[2] – “Olhai, mãe santa, meu canto de dor …”. Foi desta forma que eu vi os olhos de uma das mãe cantar, enquanto falava do amor que tem pelo seu filho e do seu desejo por justiça. Uma conversa que também falava com aquela que reina na baía de todos os santos.

O mar já estava brilhando azeviche, e talvez lembrasse o brilho de quem se foi pela sanha assassina de capitães do mato.

Sim, foi execução!

Imediatamente, no dia da chacina, surgiu uma versão sobre um suposto sequestro. O que poderia justificar a ação letal da PM. Mas sem o sequestrado, não teria como sustentar a narrativa difamatória contra às vítimas assassinadas.

O jeito foi inventar uma troca de tiros inexistente.

De acordo com os quatro PM’s que mataram Alexandre dos Santos de 20 anos, Cleverson Guimarães Cruz, 22 anos, e Patrick Souza Sapucaia de 16 anos, as três vítimas receberam a tiros a temida Rondesp, e, por isso, morreram.

Contudo, o exame pericial, realizado no inquérito instaurado, constatou que das três armas apreendidas, duas não possuíam condições de uso, isto é, sequer poderiam efetuar quaisquer disparos.

crédito: respost @ideas.ap | Imagens: Band Bahia e TV Aratu.

Foi execução!

A outra conclusão do inquérito – A vítima Cleverson Guimarães Cruz foi assassinada com um tiro disparado de cima para baixo, conforme atesta o laudo cadavérico.

A investigação aponta, ainda, a desproporcionalidade da ação, já que a guarnição da PM estava em maior número de agentes e de armas.

Estas conclusões do inquérito não deflagraram a instauração da ação penal, tampouco serviu para o afastamento dos policiais das ruas, sobretudo, da comunidade onde praticaram a chacina, pois estes – os PM’s – continuaram, após as mortes, realizando incursões na localidade da Gamboa de Baixo, em um expresso recado intimidatório às famílias das vítimas e moradores.

Há quatro meses, a pedido do Ministério Público da Bahia, foi realizada uma reconstituição dos fatos, e até os dias atuais não há uma conclusão pericial.

Moradores, que testemunharam, são categóricos em afirmar que não houve troca de tiros, e sim, que a Rondesp chegou na comunidade atirando e executou os três jovens negros em uma casa abandonada.

A impunidade, ainda que temporária é torturante, e, mais uma vez, confirma a necropolítica contra vidas negras no Brasil.

Carandiru, Vila Moisés, Jacarezinho, Gamboa de Baixo… clamam às águas por justiça, em um canto de dor, salgado e lavado por lágrimas no xirê das marés da baía de todos os santos.


[1] Franklim Peixinho é homem negro, Ogan do Ilê Axé Ikandèlé, professor de História e Direito Penal, advogado antirracista, militante do Círculo Palmarino/Bahia, Dirigente do Instituto Hori. Mestre em Políticas Públicas e em História da África, Diáspora e Povos Indígenas (UFRB), Doutor em Ciências Jurídicas. Pesquisa a necropolítica da guerra às drogas no Brasil e educação antirracista.

[2] Música dos Tincoãs, trecho da música “Na beira do mar”, gravada pelos Tincoãs

Leia também: Três “golaços” na Gamboa, comunidade preta de Salvador

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