Nadine Borges
Vice-Presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ
Enfrentar uma discussão sobre o poder da milícia é sempre uma árdua tarefa, pois a existência desses grupos organizados no Rio de Janeiro tem pelo menos 40 anos. Desde a década de 80 as milícias constituem o que comumente é chamado de um poder paralelo, o que não nos parece correto, porque esses grupos de extermínio, esquadrões da morte fazem parte de um crime organizado que ocupa as estruturas do poder público municipal de diferentes formas, ou seja, são parte do Estado e quem é parte não tem poder paralelo, tem poder que pode até ser central. O conceito de paralelismo implica não haver pontos de encontro. Diz-se que uma reta é paralela a outra justamente porque não se encontram, nem no infinito. Portanto, não se deve falar que o poder da milícia é um poder paralelo do Estado porque de alguma forma esse crime organizado profissionalizado se encontra com a estrutura estatal em diversos momentos e perpassa a vida política na cidade do Rio de Janeiro.
A questão central é que esse encontro perpendicular acontece em um ângulo de 90 graus e cabe a nós identificar em que momentos essas práticas (retas) se encontram. Desde a ditadura militar os esquadrões da morte são conhecidos e reconhecidos na Baixada Fluminense e na Zona Oeste e foram sustentados pelo regime militar, como identificamos nas pesquisas desenvolvidas no âmbito da Comissão Estadual da Verdade do Rio. Muitos ou quase todos dos porta vozes da ditadura militar nessa região alcançaram postos de representação política em cidades da Baixada em uma aliança profissionalizada com o jogo do bicho e algumas escolas de samba, como nos mostra a obra Os Porões da Contravenção, dos jornalistas Aloy Jupiara e Chico Otávio.
Se analisarmos as informações que constam na Wikipedia (https://pt.wikipedia.org/wiki/Mil%C3%ADcia_(criminalidade_no_Brasil)) sobre milícia veremos a cronologia somente a partir de 2007, mas essas ações vem de longa data. A prática de execuções sumárias por grupos privados com o aval do poder público no Rio de Janeiro durante a ditadura militar é algo notório e eis aqui o primeiro quadrante desse poder perpendicular das milícias. Com o fim do regime na década de 90 três locais do Rio de Janeiro apareceram como nascentes desses grupos: Rio das Pedras, Campo Grande ( onde a milícia é conhecida como “Liga da Justiça”) e Duque de Caxias . A ideia de normatizar, regular, fiscalizar o acesso à terra, a venda de lotes, o transporte “clandestino”, o acesso ao gás, a TV à cabo com os famosos “gatos” não é de hoje e há muito está nas mãos da milícia com o aval do poder público.
Portanto, não se pode afirmar que a milícia tem poder paralelo, já que cada um desses exemplos são encontros dessas técnicas com a estrutura de poder do Estado estampados hoje com a ascensão da ultradireita, que sempre defendeu essas práticas. Os milicianos exercem poder sobre os territórios, combatem os inimigos (não necessariamente o tráfico, prova disso são os narco-milicianos), ajudam os aliados (moradores) e obviamente cobram taxas pelos serviços prestados à população. O detalhe é que quem não paga, pode morrer. A institucionalização da execução penal extrajudicial, figura inexistente no ordenamento jurídico pátrio, se consolida nessas execuções sumárias sempre endereçadas para os mesmos nas regiões controladas por milicianos: negros e pobres.
O fenômeno parece não enfrentar obstáculos, pois mesmo com a possibilidade ventilada no debate anterior de criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV) de indiciar os autores das graves violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura militar, o texto final do relatório da CNV não considerou essa perspectiva e esses algozes seguem anistiados, o que é uma autorização social, política e jurídica da matança pelo próprio Estado em todas as suas esferas de poder, já que ao não responsabilizar torturadores mantém a autonomia do crime organizado dentro ou fora das estruturas do poder público. Podemos comparar o fenômeno das milícias em outros locais do Brasil e até do continente sul americano, mas de fato o que se vê no Brasil e no Rio de Janeiro não nos deve causar estranhamento, já que em outros países os agentes do Estado adeptos da tortura, do desaparecimento e da ocultação de cadáveres foram processados, condenados e presos, menos no Brasil. Aqui as práticas seguem autorizadas, mesmo que tacitamente.
Com um discurso palatável de enfrentamento ao tráfico, os milicianos ampliaram rapidamente seu poder construindo narrativas e se colocando como guardiões da segurança para não terem seus negócios prejudicados. O lucro sempre dependeu da construção desses inimigos que oscilam conforme o momento. A lógica do “se não é possível vencê-los, junte-se a eles” justifica a figura dos narco-milicianos. Aquele perfil inicial das milícias da década de 90 e dos anos 2000 foi se adaptando para ampliar a conquista de territórios e hoje os símbolos existentes nas portas das casas para dizer quem paga e quem não paga a milícia são marcas deste poder perpendicular. O Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro já identificou que aproximadamente 180 localidades na cidade são exploradas pela cobrança ilegal de serviços de segurança com o apoio dos pontos de vendas do tráfico de drogas, as “ bocas de fumo”. A expansão não é apenas na cidade do Rio de Janeiro, mas em todos os municípios da Baixada Fluminense e em cidades próximas, como São Gonçalo, Maricá, dentre outras.
Outro quadrante deste cruzamento é com representantes no Parlamento e no Poder Executivo, fato que ocorre desde a década de 80, como é o caso de um torturador confesso da ditadura militar entrevistado durante os trabalhos da Comissão da Verdade do Rio. Além de ser um dos mentores e cuidadores da Casa da Morte em Petrópolis, um centro extraoficial de tortura em Petrópolis, que matou e desapareceu com lideranças políticas contrárias ao regime militar durante a ditadura, o torturador foi incorporado ao jogo do bicho após o fim da ditadura em 1985. Paulo Malhães era coronel da reserva e trabalhou no jogo do bicho. Sua atuação na Baixada chefiando a segurança de empresas de ônibus e sua aproximação com o bicheiro “Anísio” é outra prova dessa perpendicularidade de poder. Essa migração da ditadura para o jogo do bicho o levou a ser alguém com poder na Baixada. Não é por acaso e nem algo recente que as narco-milícias possam contar com o apoio dos políticos.
Como o negócio envolve dinheiro e poder, a prática de alugar bocas de fumo e a autorização de alguns roubos são formas de sustentar economicamente os grupos milicianos que buscam cada vez mais aprimorar seus mecanismos para fortalecer lideranças e ter uma gestão financeira e administrativa desses territórios. Portanto, a ideia de que os milicianos enfrentam o tráfico é facilmente desmontada. A existência de policiais nas folhas de pagamento dos traficantes nas investigações do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro confirma essa hipótese.
Há que se considerar também o suposto envolvimento do Escritório do Crime (grupo miliciano de Rio das Pedras) na morte da vereadora Marielle Franco, assassinada em Março de 2018, quando estava à frente de investigações sobre a Milícia na cidade e atuando ativamente durante a Intervenção Militar do mesmo período, além das lentas investigações sobre o caso.
Diante das interseções demonstradas entre milícia, tráfico, poder público e instituições remanescentes da ditadura militar, fica claro que o poder miliciano está longe de ser paralelo, senão que é perpendicular ao Estado. É imprescindível que se investigue minuciosamente as estreitas conexões entre esses grupos a fim de eliminar a possibilidade de que estes criminosos cheguem aos poderes legislativo, executivo e judiciário e, ainda, que corrompam as corporações e instituições de segurança, cujo papel único é proteger a população, ainda que atue de maneira, aí sim, paralela a este propósito.
Referências:
https://www.plural.jor.br/documentosrevelados/wp-content/uploads/2015/12/cev-rio-relatorio-final.pdf
2 respostas
Interessante e esclarecedora em muitos pontos, a matéria.