Todo dia é dia de mulher, mas o mês de março é especialmente o Mês das Mulheres, porque dia 8 de março se tornou Dia Internacional de Luta das Mulheres. Na União Soviética, ainda antes da Revolução Soviética de 1917, mulheres camponesas fizeram muitas lutas por terra, pão e liberdade, o que fez eclodir a Revolução socialista de 1917, e nas repúblicas socialistas soviéticas, todo ano, o dia 8 de março passou a ser celebrado como o Dia das Mulheres.
Gilvander Moreira*
Os Estados Unidos tentaram apagar essa história e inventaram uma falsa história que diz ser o dia 8 de março como tendo sido iniciado por mulheres trabalhadoras estadunidenses, o que não é verdade. A maior homenagem que uma mulher pode receber é respeito, admiração e amor. “Não só flores, mas respeito”, exigem as mulheres. “Não apenas nos deseje “feliz dia”. Levante-se e lute conosco!”, bradam as mulheres lutadoras. Lamentavelmente, durante a pandemia do novo coronavírus, houve um aumento da violência contra as mulheres, que ceifa a vida de 5 mulheres por dia, no Brasil, e, assim sendo, verificamos que o feminicídio também está crescendo. Em 2018, por exemplo, 4.519 mulheres foram assassinadas, o que equivale a dizer que a cada duas horas uma mulher foi assassinada no Brasil.
Ao longo da história da humanidade, o patriarcalismo foi hegemônico em muitos períodos e lugares, proibindo a mulher de participar da vida pública. Entretanto, desde os primórdios até hoje, as mulheres chegam para ficar. Mesmo sem serem notadas, sem serem contadas, muitas vezes silenciadas, as mulheres seguem atuantes nas comunidades. É preciso vasculhar os textos da história, perceber sua presença e descobri-las atuantes, ontem e hoje. O protagonismo do Movimento das Mulheres atualmente é crescente e tem sido imprescindível para que elas se unam, se organizem e sigam nas lutas. Isso nos faz recordar o protagonismo de inúmeras mulheres na Bíblia como, por exemplo, aconteceu com o Movimento de Mulheres liderado pelas filhas de Salfaad – Maala, Noa, Hegla, Melca e Tersa -quelutou pela superação do patriarcalismo. Que bom que o escritor bíblico conservou o nome delas. Elas viram a injustiça patriarcal que estava na lei segundo a qual a herança passava de pai para filho (não para filha – Cf. Num 27,1-11). Elas se rebelaram, pois estavam sendo excluídas do direito de ter terra, porque não tinham irmãos. E em uma manifestação deram o grito: “Queremos ter direito à propriedade da terra” (Nm 27,4). Depois de um discernimento em assembleia entenderam que esta seria a vontade de Deus e assim o movimento das mulheres da Bíblia conquistou mais um direito que lhes era negado. As mulheres passaram a receber a herança do pai, do mesmo modo que outros parentes próximos. Travava-se assim a luta pela igualdade e dignidade entre homem e mulher. O livro de Números termina com esperança, pois em Nm 36,1-12 aparecem os líderes da tribo de José alertando para o perigo de as mulheres casarem com homens de “fora da tribo”, pois elas levavam consigo a terra da herança dos pais e, assim, passo-a-passo, a terra, herança dos pais, poderia ser perdida. O líder Moisés convoca uma assembleia e após discussão aprofundada chega-se à seguinte conclusão: “Mulheres, vocês podem casar-se com quem quiser, mas sempre dentro de algum clã da tribo do seu pai” (Nm 36,6). Assim se conquistava mais uma Lei para assegurar que a terra pertence a Deus e não deve ser vendida (Lev 25,23). Deus se irrita profundamente com quem sequestra a terra em suas mãos. Além das parteiras do Egito – Séfora e Fuá -, de Mirian, Débora, Judite, Rute, Jael e tantas outras do Primeiro Testamento, as mulheres referidas no livro de Números integram o grande Movimento de Mulheres de luta na Bíblia.
E as mulheres no Movimento de Jesus? No Século I da Era Cristã, a função delas restringia-se à vida familiar, onde desde a infância se exercitavam na organização interna da casa (oikia). Como funcionava no interior das casas as assembleias, a mulher tinha um papel eclesial ativo. A criação de “Igrejas domésticas” possibilitou maior influência e participação da mulher.
Muitas interpretações acabaram por esconder a presença e o protagonismo das mulheres no Movimento de Jesus, antes e depois da Ressurreição de Cristo. Urge relativizarmos certas compreensões que foram colocadas na nossa cabeça e que não resistem a perguntas simples, mas profundamente eloquentes, como aquelas feitas por crianças. Diante do quadro da Santa Ceia, uma mãe, desejosa de fazer sua filha crescer em sensibilidade religiosa, diz: “Veja como é bonito Jesus reunido com os doze apóstolos ao redor da mesa, partilhando o pão!” A filha, de apenas seis anos de idade, retrucou subitamente: “Mamãe, por que só tem homens nesta mesa? Cadê as mulheres? Por que não está aí Maria, a mãe de Jesus? E Maria Madalena, que tanto amava Jesus, por que não está aí? E as crianças que Jesus tanto amava, cadê? Não acredito que Jesus fosse um homem machista capaz de excluir as mulheres e as crianças desse momento tão importante que é a ceia.”
As questões colocadas por essa menina me fez contemplar com olhar mais penetrante o tradicional quadro da Santa Ceia e acabei constatando que o artista quis, de fato, provavelmente, indicar a presença de duas mulheres participando da Ceia de Jesus. Duas pessoas que participam da ceia não têm barba e nem bigode, traços característicos de todos os outros apóstolos. A ternura da fisionomia indica tratar-se de dois rostos femininos. Uma está à esquerda e outra, à direita de Jesus. Seriam a Mãe de Jesus e Maria Madalena? Ou seria a apóstola Júnia, a quem o apóstolo Paulo envia uma saudação no final da Carta à comunidade Cristã de Roma (cf. Rm 16,7)? Ou seriam mulheresatuantes que, desde a Galileia, seguiram Jesus (Lc 8,1-3), como discípulas, não arredando o pé de acompanhar Jesus até à Cruz? As mulheres foram as primeiras a fazer a experiência que as levaram à conclusão: Jesus ressuscitou e vive em nós. Sabemos os nomes de algumas delas: Maria (chamada Madalena), Joana (mulher de Cuza), Suzana, Maria (a mãe de Tiago o menor) e Salomé (Cf. Mc 15,40-41).
Na Galeria Nacional de Arte de Dublin, na Irlanda, dois quadros sobre o jantar dos/das discípulos/as de Emaús (Cf. Lc 24,13-35) me chamaram muito à atenção. Um quadro destaca que o jantar foi feito por uma mulher escravizada. Um facho de luz solar destaca a escrava preparando o jantar, enquanto os/as discípulos/as conversavam com Jesus na sala. Outro quadro mostra um jantar com muita fartura com a participação de quatro homens, duas mulheres, cão, gato, papagaio etc.
Segundo o livro de Atos dos Apóstolos, quem estava re-unido no momento em que acontece o primeiro Pentecostes sobre a Primeira Comunidade Cristã? Por dezenas de séculos foi colocado na cabeça do povo que o Espírito Santo tinha descido apenas sobre os doze apóstolos e Maria, a mãe de Jesus. Infelizmente, essa é uma interpretação reducionista e apologética que visa enfatizar a presença do Espírito Santo “quase” que somente nos líderes da Igreja Instituição. Rastreando o primeiro capítulo de Atos dos Apóstolos, concluímos que estavam re-unidos: “Os onze e Maria Madalena, Joana e Maria, mãe de Tiago, e as outras que estavam com elas” (Lc 24,10); “algumas mulheres, Maria, a mãe de Jesus, e seus irmãos” (At 1,14); “Galileus” (At 1,11); Cléofas e sua esposa (“os discípulos” de Emaús – Lc 24,13.18). Em Lc 24,13 se diz que dois discípulos fugiram de Jerusalém após a condenação de Jesus à pena de morte. Um deles se chamava Cléofas (Lc 24,18). Em Jo 19,25-26 temos notícia de que Maria, mulher de Cléofas, estava ao pé da cruz, juntamente com outras mulheres. Um princípio de interpretação bíblica diz que a Bíblia se autoexplica, ou seja, uma passagem pode ser iluminada por outras passagens bíblicas. É difícil pensar que Cléofas iria fugir do centro de perseguição, deixando sua esposa sob risco de ser crucificada também, pois a presença dela ao lado de Jesus poderia atiçar a ira dos seus executores. Se Cléofas está acompanhado da sua esposa Maria, temos aqui mais uma vez as mulheres ajudando os homens a experimentar a Ressurreição de Jesus.
É, provavelmente, esse grupo, citado acima, especificado como “cerca de 120” (cf. At 1,15-26), que faz a experiência do Primeiro Pentecostes cristão, que escolhe Matias para ser apóstolo, em substituição de Judas Iscariotes, que também participa da Ascensão, do primeiro Pentecostes da comunidade crista. É muito provável que tenham existido muito mais mulheres no Movimento de Jesus e, sendo bem mais próximas de Jesus, do que muitas tradições religiosas insistem em negar.
Enfim, no passado e no presente, mulheres guerreiras fizeram e fazem a diferença em lutas pela construção de “um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres”, como aponta Rosa Luxemburgo. Pela vida das mulheres, vacina para todos/as, já! E Impeachment, já![1]
09/03/2021
(*) Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: [email protected] – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br – www.twitter.com/gilvanderluis – Facebook: Gilvander Moreira III
Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.
1 – Presença e atuação das Mulheres na Bíblia. Emancipação ou opressão? Diferentes leituras – 05/03/2021
2 – Mulheres Protagonistas na História do Povo de Deus, na Bíblia, na Monarquia. Mercedes Lopes/Vídeo 2
3 – Mulheres Discípulas de Jesus desde a Galileia, por Irmã Mercedes Lopes. Vídeo 3 – 14/05/2020
4 – Mulheres Protagonistas na Visão Geral da Bíblia (1ª Parte) – Irmã Mercedes Lopes, do CEBI. 9/5/2020
5 – Mulheres guerreiras do MLB no V Congresso Nacional do MLB em Recife. Vídeo 6 – 13/9/2019
6 – Mulheres denunciam violações de direitos humanos em Belo Horizonte: Cadê moradia? 22/04/13
7 – Ocupação Eliana Silva, em Belo Horizonte: mulheres guerreiras lutam pela casa própria. 30/09/2012
7 – Ocupação Eliana Silva, em Belo Horizonte: mulheres guerreiras lutam pela casa própria. 30/09/2012
[1] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.