Mulher indígena, tal passarinho, voa…

Kuiaiú já vivia entre a aldeia e a cidade desde pequena.

Cresceu entre seus familiares Yawalapiti, no Alto Xingu. Na adolescência, cumpriu a reclusão durante um ano e meio, período de isolamento, rituais e ensinamentos que ocorrem com a chegada da puberdade entre as jovens indígenas. 

Kuiaiú, entre as crianças Yawalapiti, observam atentamente os apontamentos de médico da Escola Paulista de Medicina, no Alto Xingu.

Depois, quis estudar.  Aos 13 anos, foi para a cidade, rompendo com a tradição, pois naquela época era muito difícil mulheres indígenas do Xingu estudarem na cidade. Mesmo contra vontade da família, Kuiaiú foi alfabetizar-se e concluir o ensino médio.  Descobriu que a escola era sim lugar para a mulher. Conheceu o mundo fora da aldeia, tão grande. Aprendeu a ler, escrever e falar português.

Já morando em Canarana, cidade do Mato Grosso que perfaz um dos limites da Terra Indígena do Xingu, e trabalhando no escritório do Projeto Xingu, Kuiaú quis fazer enfermagem, e recorda que uma amiga próxima indicou um vestibular no interior de São Paulo, em Fernandópolis. Aprovada no vestibular, foi só, sem amigos indígenas. Recorda também tantas dificuldades desse período:  com a língua portuguesa e com  o ambiente urbano; e distante da terra natal. 

Amanhecer na aldeia Yawalapiti, no Alto Xingu, terra plena de conhecimentos vastos.

As amizades construídas foram tornando as coisas mais fáceis ao longo do tempo. Voltou para a aldeia após a conclusão do curso e passou a atuar no Posto Leonardo, no IPEAX, instituto que tinha um convênio com a SESAI. Teve seu primeiro emprego como profissional da saúde, vivendo um novo desafio, pois quando saíra da aldeia era uma criança, e retornara uma adulta e uma profissional.

Kuiaiú teve que reconquistar a confiança indígena, e bem humorada cita o ditado: santo de casa não faz milagre. Para construir essa relação, Kuiaiú teve que se readaptar, teve que ser ela mesma. Recorda que, para aprender outra cultura, teve que adormecer antigos conhecimentos e em seu retorno para a aldeia, se via com dois conhecimentos. O regresso também foi doloroso, lidar com a desconfiança e o medo, lidar com a própria diferença de ser e querer estudar, aprender mais e mais.

Em pesquisa ação do Projeto Xingu/UNIFESP, com o cacique Aritana Yawalapiti, in memoriam, grande líder dos povos indígenas.

Se foi longo o caminho, da aldeia até a cidade, é cedo pra dizer. Kuiaiú sabe agora que não é fácil estar na cidade, entre os não indígenas, e que a gente se sente sozinho num cotidiano onde as pessoas têm que trabalhar,  se virar,  fazer tudo, quase tudo. Aqui é você e você, diz ela.

Se ela aprecia a liberdade de passarinho, que a inspirou a sair da aldeia, rompendo tradições, também é cedo para dizer, mas sente-se realizada agora, na Saúde Indígena/SPDM, entre seus parentes de tantas etnias, Karajá, Xokleng, Xavante, Ikpeng, Trumai, entre outros vários povos indígenas, que trocam ideias e sonhos, passando pelas mesmas dificuldades e superando deficiências juntos, a gente se apoia um no outro e fica mais forte. Isso faz com que o sofrimento seja menos sentido no distanciamento da família e a perda de parentes na pandemia desse momento. 

Entre as mulheres de muitas etnias, tudo semeia e une em encontros e trocas de histórias.

Afirma que, por causa  do preconceito sofrido, muitas vezes, dá vontade de desistir de tudo, mas que a luta mesmo é continuar trabalhando pelos indígenas, contribuir para seus povos. Isso ameniza todo sofrimento e dificuldades passadas na vida urbana.

Não se ausenta, antigos conhecimentos, da prática da vida.

Aguarda que um dia as empresas abram espaço para os indígenas, não àqueles que vivem nas aldeias, mas a todos aqueles que já vivem na cidade, àqueles que já estão estudando na cidade e talvez voltem para as aldeias ou não. 

Kuiaiú foi atrás de um sonho, conheceu um mundo, carrega um conhecimento de sangue e linhagem, irreverente vontade. Faz parte de um todo com sua diferença, contribuindo de outro jeito ao ser indígena, enfermeira, militante do movimento e conquistas, reconhecendo, unindo e apoiando jovens estudantes indígenas.

Voa, tal passarinho.

COMENTÁRIOS

Uma resposta

  1. Viva!!! Parabéns querida e voe ainda há muito céu para voar

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