MÔNICA CUNHA: Fantástico, não é só de Queiroz que falamos

No último domingo (12 de julho), ganhou notoriedade a precária investigação da execução de Anderson, jovem, negro e morador da Cidade de Deus, ocorrida em 2003. Reportagem do Fantástico apontou diversas falhas e inconsistências da apuração do crime, com destaque para a falta de perícia nos fuzis utilizados pelos dois policiais envolvidos no caso, a ausência de depoimentos de familiares da vítima, a precariedade da necrópsia realizado no corpo da vítima, que não verificou a existência de vestígios de pólvora, entre outras.

A reportagem é bastante consistente e acertada na denúncia da “cumplicidade” dos órgãos de investigação com o crime, seja por ação deliberada ou omissão, mas peca ao não contextualizá-lo. Anderson é um em meio a milhares!

As falhas nas investigações dos chamados autos de resistência (termo utilizado nas delegacias para o registro de mortes praticadas por policiais em serviço) são denunciadas há anos por pesquisadores e movimentos de familiares das vítimas da violência policial. Tais falhas contribuem para o elevado índice de letalidade das polícias, sendo a regra quando se trata de violência policial, e não estando restrita ao caso de Anderson, que envolve dois ex-policiais amigos do Presidente da República: Queiroz e Adriano da Nóbrega.

Pesquisa realizada pouco depois da execução de Anderson aponta que o índice de arquivamento de casos de autos de resistência, na época, era de 99,2% no Rio de Janeiro. E para isso acontecer, não basta a inoperância da Polícia Civil ou das corregedorias das polícias, é preciso a participação de todo o Sistema de Justiça, incluindo o Ministério Público.

Como exemplo, trago aqui um caso absurdo, dentre vários outros com os quais me deparei ao longo destes anos de luta. Falo do caso do menino Maicon, de 2 anos, morto por policiais na favela de Acari. Os agentes envolvidos alegaram legítima defesa para o registro do caso na delegacia. Vejam só: legítima defesa contra uma criança de 2 anos. E a delegacia, bem como o Ministério Público, concordaram com o arquivamento do caso, sem a responsabilização dos policiais. Mais uma vez, esse é apenas um entre milhares, cada qual com suas particularidades.

A imprensa também tem a sua contribuição. Ao noticiar casos de violência policial sem abordar o vasto contexto de violações de direitos e o papel dos órgãos do Sistema de Justiça para a sua perpetuação, a grande mídia assume um papel de reprodutora da violência policial. Ao dar ênfase ao fato de a vítima ter ou não ficha criminal, contribui para a formação de um senso comum que entende que é o envolvimento com o crime que define se alguém pode ou não morrer. Que país é esse em que precisamos afirmar o óbvio: não temos pena de morte no Brasil. Se alguém cometeu um crime, ele tem que ser detido e a justiça decidir se o condena ou não. A cobertura midiática destes casos aponta para a legitimação destas mortes, com algumas exceções, evidentemente.

A polícia do Rio de Janeiro é a que mais mata no Brasil e no mundo. Da morte de Anderson até hj, foram 17 mil pessoas mortas pelas polícias no Rio (dados do ISP). Entre elas, está o meu filho, Rafael, executado em 2006 por policiais civis, e por isso digo com propriedade: não podemos tratá-los como números. As vítimas da violência policial são, quase que na sua totalidade, homens jovens, negros, pobres, moradores de favelas e periferias. São, portanto, filhos, irmãos, amigos, maridos, pais. Nunca nos esqueçamos disso. Assim como as vítimas da Covid, eles têm rosto e história.

No fundo, o que está por trás da legitimação da violência policial é o racismo. O racismo que condena negros a viver em condições precárias, a uma educação precária, à falta de saneamento básico e serviços de saúde. O racismo estrutural que condena negros a terem índices de desemprego muito superiores aos brancos e salários inferiores. O racismo que faz com que a viatura policial pare mas o táxi não, quando se é negro. O racismo institucional da mídia que rotula, na manchete, o negro como traficante mas que noticia a prisão de jovens de classe média respeitando a presunção de inocência. O racismo que faz do corpo negro aquele que deve ser controlado ou neutralizado. O racismo que denunciamos quando gritamos aos quatro cantos do mundo: Vidas Negras Importam!!!!

 

Mônica Cunha é colunista do Jornalistas Livres e fundadora do Movimento Moleque no Rio de Janeiro

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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