Por Carlos Lacerra
O MLT – Movimento de Luta pela Terra surgiu na Bahia, na década de 90, através da articulação de estudantes, trabalhadores ligados ao Movimento de Desempregados do Sul da Bahia, alguns dissidentes do MST, entre outros pensadores e trabalhadores. Em 2013 realizaram seu 1º Congresso Nacional, que expandiu suas fronteiras de luta para outros territórios do país, como Sergipe, Goiás, entre outros. Por sua atuação mais longa na Bahia, possui cerca de 100 assentamentos, mais de 50 acampamentos e acompanha mais de 12.000 trabalhadores no Estado.
Com a presença da empresa Veracel Celulose S/A, join venture pertencente 50% à Stora Enzo, 50% à Suzano, que atua na região desde o início da década de 90, as contradições no campo aumentaram significativamente, com êxodo rural acentuado, mudanças culturais locais e aumento de violência nas cidades. Detendo mais de 100.000 hectares de terra somente nessa região, a empresa responde a mais de oitocentos processos trabalhistas e é protagonista de diversos conflitos no campo da região extremo sul da Bahia, onde se localiza a Costa do Descobrimento, marcado por diversos conflitos fundiários com ribeirinhos, indígenas e sem terras, que lutam pela garantia de espaços para reprodução de seus modos de vida.
Em 2007 surgiu entre os militantes do MLT – Movimento de Luta pela Terra – regional extremo sul, a suspeita de que a Fazenda Conjunto Uberlândia, localizada em Eunápolis, estivesse alocada em terras públicas. Naturalmente a suspeita não partiu do nada, pois como moradores da região eles acompanharam as diversas movimentações latifundiárias no campo, as propriedades sendo indevidamente ocupadas e ampliadas pelos grandes produtores de cana, café, mamão e gado, principalmente, as derrubadas de mata para criação de pastos e a tomada de terras por dívidas de armazém. Assim, o MLT inicia então uma penosa pesquisa cartorial em três municípios (Eunápolis, Santa Cruz de Cabrália e Porto Seguro).
Somente em 2008, após minuciosa e intensa análise, conseguiram obter a certidão do imóvel (certidão negativa de inteiro teor¹), fornecido pelo cartório de Eunápolis, e souberam então que a Veracel havia obtido a fazenda através de permuta com outra área em Eunápolis, próxima ao distrito de Gabiarra, em 1997. Segundo o movimento, ao avaliarem o estado do documento, observaram indícios de que o mesmo poderia ter sido alterado, pois havia irregularidades acerca dos tamanhos dos imóveis.
Ainda em 2008 ocuparam pela primeira vez a área que acreditavam ser a Fazenda Uberlândia, devoluta². Na ocasião, encaminharam ao CDA – Coordenação de Desenvolvimento Agrário – um documento/ofício, solicitando a discriminatória administrativa do imóvel³, esse é o primeiro documento sobre a área, emitido pelo MLT.
Os membros do MLT que ocupavam a área receberam o primeiro despejo por ordem judicial de reintegração de posse em favor da empresa entre janeiro e fevereiro de 2009. Ficaram, então, acampados às margens de uma rodovia no distrito próximo, denominado Ponto Maneca, e não cessaram as articulações referentes à área, pressionando o Estado e contatando parceiros, enquanto, por não poder produzir, passavam por diversas privações, ficando até sem ter o que comer, dependendo de doações da comunidade local.
Em 23 de abril de 2009, ocorreu uma reunião aberta da Comissão Nacional de Combate à Violência no Campo, em Eunápolis. Nesse momento, o MLT apresentou suas reivindicações, a principal era a de discriminatória de áreas devolutas ocupadas com eucalipto, e foi definido, então, que o estado da Bahia realizaria ações de discriminatórias administrativas em oito imóveis, totalizando área aproximada de 21.500 hectares. Essa reunião contou com a presença do desembargador Sr. Gercino José da Silva Filho – Ouvidor Agrário e Presidente da Comissão Nacional de Combate a Violência no Campo – juntamente com representantes do governo do estado da Bahia e outros movimentos sociais do campo que atuam na região.
PROTOCOLO DAS AREAS SOLICITADAS. Arquivo Pessoal PROTOCOLO DAS AREAS SOLICITADAS. Arquivo Pessoal ATA da Reunião. Arquivo pessoal. ATA da Reunião. Arquivo pessoal. ATA da Reunião. Arquivo pessoal. ATA da Reunião. Arquivo pessoal. ATA da Reunião. Arquivo pessoal. ATA da Reunião. Arquivo pessoal. ATA da Reunião. Arquivo pessoal. ATA da Reunião. Arquivo pessoal. ATA da Reunião. Arquivo pessoal.
No dia 9 de junho de 2009 foi publicada no Diário Oficial do Estado da Bahia uma portaria da CDA, órgão ligado à Secretaria de Agricultura, Irrigação e Reforma Agrária (Seagri), responsável pela política fundiária estadual. A Portaria nº 26/2009 deflagrava Procedimento Discriminatório Administrativo de Terras Rurais referente à “Fazenda São Caetano e outras” (contíguas a ela: Fazenda Uberlândia e Fazenda Modelo).
Foi criada então a Comissão Especial Fazenda São Caetano de Discriminatórias de Terras Devolutas do Estado da Bahia. Essa comissão foi formada por um agrimensor, um agrônomo, um advogado e um secretário. Em 5 de Outubro de 2009 o trabalho da comissão foi concluído. Uma área de mais 1.333 (mil trezentos e trinta e três) hectares – equivalente a mais de 1866 campos de futebol – foi diagnosticada como terra devoluta do estado, devendo assim ser destinada a reforma agrária, como determina a Constituição Federal e evidenciando que uma empresa estrangeira possui terras não legalmente tituladas e/ou públicas para plantio de eucalipto. O relatório final da discriminatória ainda afirma que parte da fazenda estava ocupada por aproximadamente 100 famílias do MLT, que inclusive já subsistiam dos produtos plantados na terra. A Ação Discriminatória da área, de número 0000627-97.2010.805.0079, tramita na vara única da justiça estadual da comarca de Eunápolis.
RELATÓRIO FINAL da Ação Discriminatória. Arquivo Pessoal. RELATÓRIO FINAL da Ação Discriminatória. Arquivo Pessoal.
Com essa novidade processual, e a necessidade de sair da exposição que os trabalhadores estavam vivendo na beira da estrada, assim que tiveram acesso ao relatório final, a área foi reocupada pelo MLT, ainda em outubro.
O Projeto Produtivo do MLT tem como foco principal a melhoria nas condições de vida a partir da produção de alimentos e com o intuito de sanar os problemas da fome ocasionados pelo despejo, imediatamente após a reocupação, iniciaram um plano intensivo, norteados pelo projeto, de produção coletiva, visando cultivar alimentos de todos os tipos, o que possibilitou a produção, mesmo que de forma precária, de mais de 500 toneladas de alimento.
A VERACEL CELULOSE S/A, mesmo já tendo sido notificada pelo Estado acerca da situação do imóvel, conseguiu novamente um mandato de reintegração de posse, concedida pelo juiz de direito da comarca de Eunápolis, Dr. Afrânio de Andrade. Em fevereiro de 2010 os acampados do MLT foram convocados pela Policia Militar para audiência pública que tinha como pauta a definição dos termos da reintegração de posse. Naquela ocasião o movimento conseguiu adiar a execução por um prazo de 45 dias, alegando possuir uma roça de feijão prestes a ser colhida. Além da colheita da lavoura, o movimento utilizou esse prazo estrategicamente para articular a permanência na área sabidamente devoluta.
Na semana seguinte a audiência pública em Eunápolis, foram informados que haveria algumas reuniões da Casa Militar do Governador com a empresa onde os mesmos discutiriam as reintegrações de posse das áreas da Veracel ocupadas por movimentos sociais na Bahia. Graças à boa relação do movimento frente ao estado e seu corpo militar, conseguiram participar de uma dessas reuniões, que teve como pauta exclusiva a Fazenda São Caetano. Na oportunidade, apresentaram aos militares, na pessoa do Coronel Gomes, o resultado final da Discriminatória Administrativa, e os membros da empresa alegaram desconhecer o trabalho do estado, apesar do contexto político e das notificações. O Coronel, ciente dos tramites jurídicos envolvidos numa ação discriminatória, alegou à empresa que no que dependesse dos Militares baianos, os militantes do MLT não mais seriam despejados, visto que se tratava de área devoluta.
Paralelo a isso, articularam-se através da PGE – Procuradoria Geral do Estado – para que a mesma entrasse com ação judicial (do Estado contra a empresa), requerendo o imóvel e solicitando do judiciário que transferisse a causa que tramitava na Vara Cível, que via o caso como crime do MLT por ter obtido a posse da área, para a Vara da Fazenda Pública, que tem competência de julgar ações referentes ao Estado, como questões que envolvem terras comprovadamente públicas. Com essa conduta jurídica, a ação judicial de reintegração em favor da empresa, perde seu valor. Essa ação judicial da PGE ressalta ainda que as terras arrecadadas por intermédio da ação discriminatória deverão ser destinadas ao MLT (demandados na ação), para assentamento de suas famílias.
Manifestação da PGE. Arquivo Pessoal. Manifestação da PGE. Arquivo Pessoal. Manifestação da PGE. Arquivo Pessoal. Manifestação da PGE. Arquivo Pessoal. Manifestação da PGE. Arquivo Pessoal. Manifestação da PGE. Arquivo Pessoal. Manifestação da PGE. Arquivo Pessoal. Manifestação da PGE. Arquivo Pessoal.
No período que se seguiu ao processo da PGE (aproximadamente cinco meses até que houvesse outra novidade processual), os membros do MLT continuaram se mobilizando e produzindo na área, sempre tentando noticiar os objetivos e metas, bem como trazer parceiros de fora do movimento para dar visibilidade à causa, como juristas, professores e acadêmicos em geral, pesquisadores, repórteres e outros. Em agosto de 2010, após diversas viagens e articulações, o juiz de direito da comarca de Eunápolis realizou uma sentença inédita na região, mantendo os membros do MLT na área por força de liminar judicial de manutenção de posse, conferindo oficialmente a posse do imóvel ao MLT e também, ao menos temporariamente, neutralizando as futuras ações de reintegração por parte da empresa. Esse mandato tinha o objetivo de suspender o processo, já aberto pela empresa, de reintegração de posse, pelo prazo de um ano.
Em outubro houve uma audiência judicial de tentativa de acordo entre o Estado e a Empresa, onde a mesma solicitou sessenta dias de prazo para apresentação de proposta de acordo com o estado, prazo prorrogado posteriormente para noventa dias, totalizando cento e cinquenta dias, sem apresentar proposta alguma. O MLT acredita que a empresa solicitou esses prazos para se articular na tentativa de derrubar o mandato de manutenção de posse, o que não ocorreu.
No entanto, ao invés da empresa apresentar ao Estado propostas de acordo, a mesma recorreu ao Tribunal de Justiça da Bahia tentando derrubar o mandato de manutenção de posse concedida pelo Juiz de Eunápolis, com alegações de que o MLT estava destruindo o eucalipto da empresa, degradando o meio ambiente, entre outras. No entanto, graças à assessoria jurídica popular prestada pela AATR/BA – Associação de Advogados dos Trabalhadores Rurais da Bahia – (Associação que há trinta anos defende popularmente os direitos assegurados aos trabalhadores rurais e comunidades tradicionais).
As alegações da empresa foram contestadas e remetidos a ela todos os danos atribuídos ao movimento, demonstrando através de evidências, inúmeras violações ambientais, com fotografias cedidas pelo CEPEDES (Centro de Pesquisa e Estudos para o Desenvolvimento do Extremo Sul), que possuía imagens e outras evidências de degradação ambiental por parte da empresa, como derrubada de mata nativa com “correntão” (pratica de unir dois tratores por uma corrente extremamente grossa para derrubada intensiva de floresta) e plantio de eucalipto em áreas de reserva.
Em mais essa ocasião, o desembargador percebeu a fragilidade da defesa gerida pela empresa, mantendo a decisão da primeira instância, no caso, a posse do MLT no imóvel.
Durante o prazo da manutenção, perceberam que somente com produção e mobilização, assegurariam sua permanência no imóvel, então, pautaram internamente o Projeto Produtivo do MLT com olhares especiais às produções de curto e médio prazo. No entanto, precisaram revelar à sociedade suas produções, pois devido ao poderio da empresa era extremamente difícil inserir no noticiário local quaisquer mudanças no contexto da área, o MLT convidava repórteres, sites locais e radialistas, e a exceção de um ou dois (que no decorrer da situação, saíram da cidade ou foram cooptados) não havia nada da imprensa local que demonstrasse os avanços obtidos pelo MLT.
Todavia, as mobilizações do movimento não cessaram, e eles alcançaram visibilidade em diversos fóruns sobre o tema, além de pesquisas em inúmeros trabalhos de renomadas instituições de ensino brasileira, como PUC-RJ, USP, UESC, entre outras, e tendo sido citados em artigo apresentado na Conferência Internacional sobre Concentração de Terras (Land Deal Politics Initiative, LDPI, Cornell University. Já que a imprensa local não publicava, aconteceu um efeito de fora para dentro, das grandes mídias nacionais e internacionais insuflarem o silêncio das mídias locais e regionais. A permanência se assegurou então, graças ao mandato de manutenção de posse e a capacidade de produção, noticiada no mundo todo, com produções superiores a 1000 toneladas de alimento somente nesse período.
A partir de então, o movimento segue fazendo gestões frente ao Estado, para assegurar a produtividade e moradia dos acampados, em tempo que luta institucionalmente para garantia do projeto de assentamento.
Glossário
[1] A certidão de inteiro teor do imóvel é aquela que indica tudo o que está contido numa determinada matrícula no cartório. Isso quer dizer que será copiado todo e qualquer dado indicado no registro, por isso o nome, inteiro teor.
[2] Terras devolutas são terras públicas sem destinação pelo Poder Público e que em nenhum momento integraram o patrimônio de um particular, ainda que estejam irregularmente sob sua posse
[3] O processo discriminatório é aquele destinado a assegurar a discriminação e delimitação das terras devolutas da União e dos Estados, além de separá-las das terras particulares e de outras terras públicas.
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