Militares. Da matadeira ao caveirão

A nova dramaturgia da repressão, violência e vigilância militar no nosso dia a dia
da matadeira ao caveirão1

A imagem dos militares da ativa como defensores dos interesses da Nação, e que os oficiais da reserva estão de pijama a ver sessão da tarde, não condiz com a realidade, longe disso. As Forças Armadas brasileiras se tornaram um ator social inserido no contexto da ordem capitalista global. O cruzamento entre o histórico de oficiais da ativa e da reserva e suas relações comerciais, familiares e políticas explicitam o projeto de poder do alto comando militar brasileiro. A inserção da instituição como agente econômico internacional ajuda a impulsionar a sanha autoritária.

por Ed Viggiani, fotógrafo e sociólogo || fotos César Diniz

Há um desenho sendo construído de poder hegemônico no Brasil, vivemos a guerra híbrida, como aponta o estudo do antropólogo Piero Leirner, bombardeados por um moto-contínuo de desinformações para se perder a noção de realidade. Os militares buscam capilaridade em todas as áreas do Estado, milhares ocupam a administração pública. Estamos no início de um processo autoritário inédito. Para o neoliberalismo a desregulação econômica é imprescindível e a democracia é um empecilho. O ideário neoliberal foi incorporado à tropa e a falácia do Estado mínimo é condição do projeto político da instituição, sonho de generais, almirantes, brigadeiros e solteiríssimas.

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O monopólio da violência

Segundo Max Weber, o Estado tem o “monopólio legítimo da violência”; no caso brasileiro, além do controle social e das aposentadorias, os militares idealizam um país subordinado ao coturno, com o orçamento da União controlado e gastos somente nas áreas policiais e militares. A garantia da reprodução dos privilégios e a certeza de impunidade engordam o capital social dos membros da elite da instituição; em outros termos, parentes, amigos e advogados dos oficiais são sócios nos negócios das poucas pessoas que decidem o bem e o mal no Planalto Central, na Barra da Tijuca e na Amazônia.

A Constituição de 1988 esclarece o papel das Forças Armadas, mas espelha lei do período da ditadura militar: a defesa da Pátria e fronteiras, defesa dos poderes constituídos e garantia da lei e da ordem. No ano de 2021, o Ministério da Defesa foi agraciado com 22% do total das verbas do governo federal, são os únicos servidores públicos sem salários congelados. O mesmo orçamento censurou pela primeira vez a pesquisa do IBGE que é a principal referência para toda e qualquer política pública e privada no Brasil, cortaram 96% do seu caixa, quase uma extinção. O orçamento é autoexplicativo.

No plano internacional a tática é o arrendamento da soberania nacional com Amazônia, com base de Alcântara e com tudo. Em comum entre os militares condôminos do Palácio do Planalto é o currículo no exterior, especialmente nas missões de paz no Haiti (2006-17) e nos Balcãs (1995-2002), ou como adidos militares em Israel, Angola, EUA e Venezuela. São oficiais da ativa e da reserva com contatos, vínculos e relações estabelecidas com militares, políticos e empresas de outros países; alguns oficiais fazem parte do conselho de alguma empresa ou instituição, prestígio conta ponto no mercado e aumenta a conta bancária. 

Basicamente, os militares ativos das Forças Armadas criam as necessidades, elaboram os editais e licitações e executam a produção ou a compra; vários da reserva são representantes de corporações do universo bélico, farmacêutico, de comunicação e outros, utilizam os seus contatos para emplacar a venda dos produtos das empresas. Alguns foram colegas de academia formados no período da ditadura militar, herdaram a arrogância dos seus mestres dos anos de chumbo, porém com outro projeto de poder. Oficiais das Forças Armadas da ativa e da reserva são atuantes no mercado internacional, eles não representam os interesses da Nação, mas os das empresas às quais mantém relações e voltados ao seu projeto de poder.

Não é uma instituição qualquer, mas a que detêm a força, se considera a mais capaz de conduzir o país, acima da luta de classes. É a instituição mais blindada e beneficiada pelo Estado, tem uma Justiça paralela sem controle da sociedade, e durante parte da maior crise sanitária dos últimos 100 anos não permitiu o uso civil dos seus hospitais, 85% da capacidade de leitos ficou ociosa à espera de algum oficial ou soldado. O Exército brasileiro vive uma realidade paralela, a fantasia do universo do quartel hierárquico e disciplinado às custas do empenho e sangue dos civis.

A impunidade é uma certeza, vide a tranquilidade do sargento carregando 39 kg de cocaína no avião presidencial preso na Espanha. Dois oficiais da Aeronáutica trabalhando no GSI também estavam envolvidos e foram descobertos, o esquema só veio à tona pela atuação da polícia espanhola. O Gabinete de Segurança Institucional, sob o comando do general Augusto Heleno, não foi capaz de identificar uma quadrilha internacional de drogas funcionando dentro do Palácio do Planalto operando com aviões da FAB, e tampouco quem mandou o vizinho do presidente matar Marielle.

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O capitalismo da vigilância

Para o antropólogo Piero Leirner, Jair é um projeto militar gestado desde a criação da Comissão Nacional da Verdade no governo de Dilma Rousseff. Não podemos subestimar a turma da farda, boa parte da tecnologia contemporânea começou a ser criada por investimento estatal na área militar e aeroespacial. A filósofa americana Shoshana Zuboff, classifica o momento histórico como capitalismo de vigilância: é a concentração de conhecimentos sobre nós. A partir das informações coletadas cria-se a possibilidade de previsão do mercado futuro, é “a capacidade de armazenar e traduzir experiências e comportamentos”. O Google é o berço do capitalismo de vigilância e o caos é a fase atual desse processo antidemocrático. Segundo Zuboff, o próximo passo é a governança privada. A hegemonia pretendida é o controle dos processos políticos pela previsão da demanda de grupos específicos, o poder absoluto sobre o conhecimento e a cultura é a inviabilização da democracia.

As ascensões do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha ocorreram quando Exército e milícias se articularam e contaram com a decisiva penetração da máquina de propaganda. O atual governo brasileiro é composto da articulação entre milícias e Exército; eles ganharam as eleições de 2018 principalmente pela atuação nas redes sociais, e não governam, apenas trabalham as redes. Em 2018 os militares fizeram 79 parlamentares entre federais e estaduais, além de dois governadores. Há um estímulo para aumentar o contingente de soldados na política em todos os níveis e ganhar capilaridade no Estado e na sociedade. Não é só desvio de função ou avanço nos limites da Constituição, é projeto hegemônico, daqueles de forçar a barra constitucional para ficar infinitamente no poder.

A identidade que há entre milícias e Exército é a morte como negócio. De um lado, o cancelamento de CPF, de outro, o investimento em dispositivos de repressão e vigilância justificados pela fantasia do inimigo oculto. Na ausência de qualquer inimigo externo, o povo é alvo dessa tropa belicosa desde o século XIX. O genocídio praticado pelo Exército em Canudos (1896-97), no interior da Bahia, não foi exceção. Naquela guerra os soldados usaram armas modernas importadas da Europa, o Krupp (canhão) era chamado de “matadeira” pelos sertanejos.

À época da compra do equipamento usado pela polícia do Rio de Janeiro no massacre de Jacarezinho, no dia 06 de maio último, a mídia hegemônica enalteceu a aquisição. O blindado conhecido como “caveirão” foi desenvolvido por empresa israelense para reprimir o povo palestino. A mesma mídia propagadora de preconceitos sobre a população pobre e preta é a que chancela as ações das milícias e dos militares. A burguesia apoia a extrema-direita em favor do crescimento do seu capital sem constrangimento. A ordem unida é passar a boiada e as privatizações. Caveirão e matadeira são as nomeações populares dessa confraternização macabra.

Artigo escrito originalmente no blog Fotógrafos pela Democracia: https://fotografospelademocracia.wordpress.com/2021/05/12/da-matadeira-ao-caveirao-parte-1/

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Referências

O dilema das redes (The social dilemma). Diretor Jeff Orlowski, 2020 (Netflix)

https://theintercept.com/2021/03/04/entrevista-bolsonaro-presidente-e-projeto-das-forcas-armadas-diz-piero-leirner/

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/04/instituto-de-general-villas-boas-tem-convenios-com-governo-e-verba-federal.shtml

https://brasil.elpais.com/brasil/2018/04/27/politica/1524850092_104085.html

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/05/entenda-a-composicao-das-forcas-armadas-e-compare-gastos-militares-do-brasil-com-outros-paises.shtml

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47756458

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Leia também nos Jornalistas Livres

https://jornalistaslivres.org/pazuello-enlameia-o-exercito-mas-nao-sera-punido/

https://jornalistaslivres.org/massacre-no-jacarezinho-e-um-ato-politico/

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