Massacre no Jacarezinho é um ato político

Artigo de Leandro PC Freire relembra que a chacina do Jacarezinho podia ser evitada, apenas cumprindo a ADPF 635 (ADPF das favelas) que bane esse tipo de ação policial.
Manifestação em 13.05 2021, em frente ao palácio da Guanabara, RIo de Janeiro. Fotos Katia Tortorelli @katitortorelli_

Por Leandro PC Freire

O contexto político é fundamental para entender o massacre no Jacarezinho. Trata-se de uma ação policial que em nada relaciona com promoção de justiça ou combate ao crime. A ação realizada no coração ideológico do governo Bolsonaro, o Rio de Janeiro, e de forma propositalmente ilegal, só pode ser entendida se pensarmos o contexto, a narrativa divulgada nas bolhas da extrema direita e os objetivos de tal ato.

Desde a campanha eleitoral de 2018, e por toda a trajetória política de 28 anos como deputado, o presidente Bolsonaro busca tecer sua narrativa contra a democracia verbalizando slogans da necropolítica. No poder, essa narrativa passa pelo discurso simplista de que “o Presidente não consegue fazer o que quer” pois os “outros não deixam”. No campo institucional, após o acordo com parte do Poder Legislativo (com forte indícios de corrupção), o governo volta sua artilharia para o único Poder que freia os seus ímpetos autoritários, o Supremo Tribunal Federal. O STF tem, por excelência, a função de proteger a Constituição Federal, documento recheado de direitos e garantias individuais e coletivas, pesos e contrapesos, que impedem abusos por parte dos Poderes constitutivos do Estado brasileiro.

Optando pela radicalização do discurso, nas últimas semanas mobilizou-se um dos fronts das bases políticas do presidente: a parte marginal das polícias. Aproveitando para abrir mais espaço para as milícias na Cidade Maravilhosa, e usando a ação para reaglutinar seguidores, promoveu-se deliberadamente a execução extrajudicial na favela do Jacarezinho.

O objetivo principal desta ação não foi pacificar o morro, combater traficantes ou cumprir mandados de prisão dentro da legalidade, mas sim criar um fato político que dividisse a sociedade na falsa polarização de uma guerra fictícia entre polícia versus bandido. E como na guerra vale tudo para vencer, a sociedade aceita passivamente os seus “efeitos colaterais”.

Mais uma vez usou-se a morte como instrumento de manipulação da opinião pública. A ação buscou ampliar o discurso da extrema direita bolsonarista, revivendo o senso comum ensinado ao povo há décadas pelos meios de comunicação: que segurança pública se resolve com a violência do Estado. 

A ação forçou os mesmos meios de comunicação, que criticam abertamente o governo Bolsonaro, a tomar partido dentro das regras do jogo que o presidente e os milicianos ditam e conhecem bem. As mídias se viram obrigadas a retornar à velha narrativa de relativizar ações policiais ilegais, já que se combateria o mal maior, o tráfico de drogas. Retornou-se a um dos velhos “consensos” da nossa precária democracia: o autoritarismo das forças policiais presente no militarismo das policias ostensivas esculpido na Constituição Federal, no seu artigo 144. 

A estrutura desse ato/massacre teve pelo menos 3 alicerces claros. O primeiro é a coordenação do massacre pelo Palácio do Planalto. Ligação direta entre o Presidente da República e o Governador do Rio de Janeiro que, como já mostrou os Jornalistas Livres, se reuniram no dia anterior ao terror em Jacarezinho.

O segundo foi o uso de um aparelho policial corrompido, contando com a conivência histórica do Poder Judiciário e do Ministério Público fluminenses, especialmente o delegado que coordenou as operações e que, segundo o jornalista Reinaldo Azevedo, tem histórico de coordenar ações com elevados números de mortes. 

O terceiro foi a mobilização das redes sociais por meio da maior máquina de propaganda organizada desde a 2ª Guerra Mundial, operada pelo maior criminoso do nosso século, Steve Bannon. Para se verificar isso, basta ver a sequência de fatos dessa semana. Quarta-feira: reunião entre Bolsonaro e Cláudio Castro. Quinta-feira: operação policial e entrevista coletiva do delegado. Sexta-feira: viralização da hashtag “# faxina”. 

Para além da necessidade de reaglutinação ideológica, a ação teve também como objetivo isolar o STF da opinião pública, mantendo as operações milicianas ilegais (disfarçadas de política de segurança) no Estado do Rio de Janeiro. 

Se fosse cumprida a lei a Chacina do Jacarezinho não existiria

Isso porque está em vigor liminar na ADPF 635 (ADPF das favelas) que bane esse tipo de ação policial, por um lado. Por outro, há isolamento internacional do governo Bolsonaro na ADI 5901 (que discute a Lei 13.491 que alarga competência da jurisdição militar em crimes de militares contra civis) visto recente parecer da IBAHRI na ação citada.

A queda de braço com o Guardião da Constituição na questão das favelas cariocas começou em outubro de 2020, após 3 meses de cumprimento da liminar do ministro Facchin. A letalidade policial, que estava em cerca de 148,8 mortes/mês (de janeiro a maio de 2020), caiu para 34 em junho por força da decisão do Supremo que suspendeu as ações sem planejamento ou motivação clara. Permaneceu “baixa” durante 3 meses, mas voltou para 145 em outubro (um aumento de 425%) segundo o Observatório da Violência do Rio de Janeiro.  

Por isso, nas últimas semanas, a extrema direita reviveu a mobilização radical com manifestações de rua e aproveitou a ação no Jacarezinho para dar sobrevida a uma narrativa que estava em baixa: aquela contra o “pessoal dos direitos humanos”. Vale ressaltar que este termo foi inventado para personificar um inimigo fictício, visto que representa indistintamente toda uma gama de pessoas, entidades civis nacionais e internacionais que denunciam agentes que agem fora da lei ou promovem arbitrariedades, ou seja, combate atos desumanos e ilegais de quem detém o poder no Estado brasileiro. 

Vale lembrar que a derrota de mobilização semelhante na cidade de Sobral-CE, há cerca de um ano, dimensionou para os estrategistas da extrema direita bolsonarista os limites da cooptação de forças de segurança. Forças estas que convivem na contradição entre o dever da legalidade e a pressão de agentes radicais que pregam ilegalidades, usam da força como método policialesco torpe, montam grupos de extermínio e milícias. As ações ilegais, que persistem nas corporações pela baixa qualidade proposital dos órgãos de controle das polícias, vêm numa crescente, como bem demonstrou Luiz Eduardo Soares, desde a manutenção da polícia militarizada no Texto Constitucional.

Nesse contexto, o redirecionamento das ações ilegais contra direitos fundamentais e de cooptação das forças de segurança, e também da narrativa midiática, para o epicentro do bolsonarismo no Rio de Janeiro pode ser considerado mais bem sucedido e foi, sem dúvida, mais bem articulado com as redes sociais, além de encontrar menor resistência do que em Sobral por utilizar a estrutura já corrompida e corrupta das polícias fluminenses. 

Apesar de me parecer que estamos diante de um quadro institucional de retrocesso geral da política bolsonarista e uma tentativa de reaglutinação discursiva emergencial, não será a saída institucional, por CPI ou ações penais no Poder Judiciário, que dará força para a derrocada desse projeto necropolítico ou promoverá a punição dos crimes praticados desde 2019 por agentes desse governo. 

Também não será uma derrota nas urnas que terá essa função, pois o pleito eleitoral de uma disputa como essa dará um verniz de legitimidade democrática às práticas criminosas e danosas contra a própria democracia que vemos diariamente, ou seja, dará continuidade institucional aos atos autoritários.

A tensão entre o militarismo da polícia (previsto no art. 144 da Constituição Federal) e os demais direitos fundamentais individuais e coletivos (consolidados, principalmente, no art. 5 da mesma Constituição) estão no limite do esgarçamento institucional. 

Os objetivos de extermínio das camadas mais vulneráveis se concretizam diariamente, na prática, seja pela total displicência do Governo Federal no combate efetivo à Covid-19, seja pela ação ilegal de policiais criminosos. Chegou o momento da democracia encerrar o ciclo da necropolítica perpetrado pela negação da pandemia e pelas ilegalidades homicidas de setores das polícias, destruindo as heranças da ditadura ainda presentes nas forças de segurança e que hoje servem para sustentar o projeto de Brasil como eterna colônia. 

A opção de manifestações ao ar livre se torna menos danosa do que os riscos da Covid-19, basta ver os números e os recentes estudos na área. Mas isso é tema para outra reflexão.



Leandro PC Freire é sociólogo, advogado e ativista de direitos humanos

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

COMENTÁRIOS

Uma resposta

  1. è verdade, Jacarezinho è um ato politico mas se parece muito com as rapresàlias nazistas da segunda guerra mundial… que vergonha para o Brasil! fora Bolsonaro!

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