Cerca de um mês após o golpe que implantou a ditadura civil-militar (1964-1985) no Brasil, o comunista e ex-deputado federal constituinte Carlos Marighella foi alvejado no cinema Eskie-Tijuca, no Rio de Janeiro, ao resistir às investidas dos policiais que tentavam prendê-lo. Isso aconteceu em maio, quando a censura à imprensa ainda não estava institucionalizada no país, o que fez com que a imagem dele ensanguentado no camburão fosse publicada em diversos jornais. E como o habeas corpus ainda era um instrumento que tinha eficácia para conter alguns dos inúmeros abusos dos militares, em julho Marighella foi libertado do último cárcere de sua vida.
Ricardo Sizilio*
Esse fato, obviamente retratado no filme Marighella, foi descrito pelo próprio guerrilheiro urbano em seu livro Porque resisti à prisão, publicado em 1965. Além de descrever os porquês do enfretamento aos policiais, Marighella fez diversas considerações sobre a situação do país, sua notória insatisfação com os rumos do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e a necessidade de se enfrentar o autoritarismo implantado no Brasil. E sobre isso ele afirmou que o “livro é uma mensagem de resistência. E é sobretudo, endereçado à nova geração. Os jovens de hoje é que melhor poderão compreendê-lo e […] com a audácia e o entusiasmo que lhes são próprios, os jovens continuarão afluindo com maior vigor ao campo da luta”.
Quando saí do cinema[1], imediatamente me lembrei desse chamamento de Marighella, porque é isso que Wagner Moura faz do longa, uma mensagem de resistência para diversas lutas. E não poderia ser diferente, tendo em perspectiva a postura política do diretor diante da distopia em que vivemos. Portanto, o filme é endereçado para muitos, dentre os quais, aos que têm “vigor ao campo da luta”, porque mostra que Marighella tinha ciência de que a luta em dado momento não seria ganha, mas, mesmo assim ela se fazia necessária. O longa traz o combustível que Marighella sempre carrega, o da luta, resistência e utopia. Tal qual o comunista, o filme serve para inspirar para as muitas batalhas cotidianas, fazer o que tem que ser feito, mesmo com o risco perene do cometimento de erros, e ainda que diante de um inimigo muito mais poderoso.
Antirracista
O filme também é endereçado ao combate ao racismo. A mensagem antirracista está no centro da sua estrutura, seja pela escolha de Seu Jorge, um homem retinto, como ator principal, ou pela opção de Marighella ser chamado por um apelido, “preto”, em boa parte do filme, além do diretor ter feito do comunista um praticante, ou simpatizante, do candomblé. E o racismo estrutural também é demonstrado, quando, por exemplo, o delegado Fleury assassina dois jovens que tinham cometido algum pequeno delito, chamando-os com nojo de negros. É a violência policial e o racismo numa cena só, que simbolicamente diz que por mais que os negros corram, as balas sempre os alcançam.
Ou seja, embora o filme seja ambientado nos anos 1960, ele diz muito dos dias atuais. Os assassinatos e as torturas cometidos pelos militares obviamente são retratados, o que serve para mostrar para aqueles que clamam pela ditadura, seja por ignorância, má-fé ou maldade mesmo, o que o Estado era (é) capaz de fazer. Nessas cenas, e em diversos outras, a luta pelos direitos humanos, em suas diversas nuanças, está posta.
Outra coisa que não poderia deixar de mencionar é a propaganda em defesa do respeito às mulheres. E para isso Moura coloca Marighella mais de uma vez ensinando ao seu filho que ele tinha que “respeitar as meninas”. Ainda sobre a importância feminina, não me parece ter sido acaso que a única pessoa da ALN que permaneceu viva tenha sido uma mulher, que deu continuidade à luta.
Além do chamamento às lutas e resistências, o filme também tem a função de contribuir na reconstrução da memória do comunista baiano, além de dar maior visibilidade à história dele, fazendo com que muitos possam conhecê-la. Ressalte-se, todavia, que este movimento não é de agora, tendo em vista que, principalmente a partir de meados dos anos 1990, foram produzidas diversas biografias, textos acadêmicos, músicas e documentários sobre o comunista. E esta vasta produção sobre a vida e obra de Marighella é importante na disputa por sua memória, afinal, ao longo de anos o Estado buscou silenciar a trajetória dele, ao mesmo tempo em que construiu e/ou ajudou a sedimentar a imagem dele como a de um terrorista, agente de Moscou, assassino impiedoso que pretendia implantar uma ditadura no país.
E esse movimento de reconstrução me impactou, confesso. Assim que saí do cinema me foi perguntado o que achei do filme e não soube responder, precisava pensar. Isso porque fui com a expectativa de encontrar na tela o guerrilheiro urbano mais enérgico do que o que Seu Jorge construiu. A opção feita no filme foi a de um líder revolucionário que também era amoroso, preocupado com o filho e até, em dado momento, melancólico. Um Marighella humano, dotado de múltiplos sentimentos, convicções, contradições, medos, como ele era, obviamente. E ao humanizá-lo Wagner Moura faz com que seu filme seja mais um dos elementos importantes para a reconstrução da imagem do comunista baiano.
Nesse processo de enfrentamento e reconstrução, é emblemática a cena que encerra o filme, encenada pela atriz Maria Marighella, sua neta. Interpretando Elza Sento Sé, mãe do filho do comunista, Carlos Augusto, a personagem ao ver a imagem do corpo de Marighella grita insistentemente que aquele homem amava o Brasil. E essa é uma das mensagens que o diretor quer passar, ao contrário do que é afirmado pelos detratores de Marighella. Isso é tão evidente que nos créditos é exibida uma cena com os membros da ALN cantando, emocionados, o hino nacional. Antes, um dos guerrilheiros já tinha sido fuzilado pelos policiais gritando que era um patriota que estava lutando pelo Brasil. Isso serve para opor a equivocada perspectiva da direita brasileira de que é ela quem detém o patriotismo no país.
Como não poderia deixar de ser, o longa mostra as torturas, assassinatos, racismo e desumanidade de Fleury e dos militares. O sadismo e a truculência dos torturados estatais são retratados de tal forma que causaram “embrulho no estômago” em muitos dos que viram as cenas. Também foi mostrada a ligação dos EUA com a ditadura brasileira, fato já amplamente estudado pelos historiadores. Com isso, é como Wagner Moura perguntasse, quem é que amava de fato o país? Quem são mesmo os assassinos impiedosos?
O filme não poderia deixar de exibir alguns dos principais fatos da vida de Marighella entre 1964 e 4 de novembro de 1969, quando ele foi assassinado em uma emboscada em São Paulo. Ele mostra, entre outros, que a crença de que o “povo” participaria da revolução não se concretizou; que muitos dos que combatiam a ditadura eram estudantes, a maioria da classe média; que a censura à imprensa era constante. Exibe como a rede de solidariedade, que continua tão imprescindível, foi essencial para a luta contra a ditadura, afinal, todos sabemos que há muitas formas de combates, que não se limita aos que estão na linha de frente. E também mostra a abdicação, abnegação e as dores físicas e psíquicas dos que optaram por enfrentar a ditadura de armas na mão, e como isso reverberava em seus amigos e familiares.
Por fim, não custa lembrar que o filme é uma ficção inspirada na biografia de Mário Magalhães. Portanto, se nos textos biográficos já há muita “ilusão biográfica”, como tão bem escreveu Pierre Bourdieu, não se incomode com algumas imprecisões e licenças poéticas. O filme de Moura tem lado e ele não esconde, sendo este um dos grandes méritos do longa que merece ser visto quando estrear nacionalmente em abril de 2021.
[1] A estreia do filme no Brasil está prevista acontecer para abril de 2021. Mas, de 19 a 25 de novembro houve a pré-estreia em uma sala em Salvador, cidade natal de Marighella.
(*) Historiador, mestre e doutorando em História pela Universidade Federal da Bahia. Autor do livro Vai, Carlos, ser Marighella na vida, publicado pela Edufba em 2019.