Marielle e a mãe PM de São Paulo

 

Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História da UFBA, com ilustração de Cau Gomez

É normal que em experiências de crise profunda aconteça um alargamento da política. Ou, em outras palavras, em momentos de intensa instabilidade os conflitos ficam mais aguçados e o debate público acalorado. Nessas circunstâncias, tudo vira política, tudo se torna objeto de discussão política.

 

Aqui no Brasil, desde 2013 vivemos uma experiência de crise profunda, um momento de intensa instabilidade. Em situações como essa, de alargamento da política, um evento jamais é apenas um evento. Os significados de todos os eventos são disputados, lidos e apropriados na dinâmica da crise.

 

Aqui, neste ensaio, trato especificamente de dois eventos que dizem muito sobre o Brasil, dizem muito sobre a crise brasileira: o assassinato da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL) e a ação da “Mãe PM de São Paulo”.

 

São dois eventos bastante diferentes e ao longo do texto tento pontuar com cuidado essas diferenças. Porém, há algo em comum entre eles: tanto num caso como em outro existe um corpo morto estirado no chão. Não é qualquer corpo. É corpo de gente ‘matável’.

 

‘Matável’, na mentalidade escravista que funda o Brasil como nação independente, são aquelas pessoas que nasceram para serem assassinadas, que não fazem falta, que são substituíveis. É só chegar e matar.

 

Vamos aos eventos, com cuidado no exercício da comparação, pois um assassinato, repito, é bastante diferente do outro, bem diferente mesmo. A semelhança está na perversidade que naturaliza essas mortes, que define certos corpos como matáveis.

 

Um aspecto chama especialmente minha atenção no assassinato de Marielle Franco: a falta de interesse dos assassinos em dissimular a execução.

 

Os assassinos, simplesmente, rasgaram o carro de uma parlamentar com tiros de metralhadora e não se preocuparam em simular um latrocínio. Eles tinham a certeza absoluta de que era fácil matar Marielle. É só chegar, matar e ir embora. Não dá em nada.

 

É aqui, na certeza da impunidade, que está o significado profundo do evento. É aqui que a morte de Marielle pode nos ajudar a entender a crise, nos ajuda a entender o Brasil.

 

Marielle reunia em si todas as agendas que movem as esquerdas ocidentais contemporâneas. Ela era pobre, periférica, mulher, negra e LGBT.

 

Marielle era a personificação da representatividade, era a combinação dos identitarismos com o recorte sociológico de classe. Marielle era o futuro da esquerda brasileira.

 

Pobre, periférica, mulher, negra e LGBT.

 

Da reunião de todas as experiências de opressão inventadas na modernidade vinha a força de Marielle, mas também é aí que reside sua vulnerabilidade. Marielle era matável exatamente por ser pobre, mulher e negra. Os seus assassinos tinham a total convicção de que ela era ‘matável’. É que todos os dias eles matam gente desse tipo. Matam, deixam o corpo morto no chão e vão embora. Dá em nada não.

 

A convicção era tão forte que eles não imaginaram que o crime poderia ter repercussão internacional. Eles nem se deram conta das relações da esquerda brasileira com órgãos internacionais de defesa dos direitos humanos.

 

Guiados pela lógica perversa do escravismo, que define os corpos de pretos e pretas, de pobres, como objetos para todo tipo de atrocidades, os assassinos de Marielle estavam convencidos de que era só cercar o carro, descarregar a metralhadora e partir. Assim, como eles fazem sempre, com qualquer pessoa que, como Marielle, seja ‘matável’.

 

Já o caso da “Mãe PM de São Paulo” é aquele tipo de casca de banana que faz muita gente inteligente e bem-intencionada escorregar na análise. Conto para quem ainda não sabe do que se trata.

 

Aconteceu do dia 11 de maio, em Suzano, região metropolitana de São Paulo.

 

Lá pelas onze da manhã, a cabo Kátia da Silva passeava com as filhas quando foi abordada por um assaltante. Em legítima defesa, acionando sua técnica de profissional da segurança pública, Kátia disparou três vezes contra o ladrão, Eliventon Neves, que contava 21 anos. Elivelton morreu no local.

 

Não estou dizendo que Kátia é igual aos assassinos de Marielle.

 

Também não estou sugerindo que Elivelton seja vítima, do mesmo modo que Marielle é.

 

A comparação que proponho se dá em outros termos, por outros motivos.

 

Kátia agiu em legítima defesa e não deve ser punida. Nenhuma liderança responsável da esquerda brasileira disse o contrário disso e se disse é porque não é responsável.

 

O deputado Marcelo Freixo (PSOL/RJ), reconhecido pela sua atuação em defesa dos direitos humanos, teve seu nome associado a falsas mensagens publicadas na internet que vitimizavam Eliventon e pediam a punição de Kátia.

 

Freixo desmentiu prontamente, o que não é suficiente para reparar completamente o estrago. As pessoas continuam dizendo que o deputado Freixo defende bandido, que a esquerda brasileira defende bandido. A esquerda brasileira não defende bandido.

 

O que a esquerda reivindica é que os bandidos sejam punidos nos termos da lei. Quem defende bandido, quem quer levar ladrão para o céu, é outro. É um sujeito que, se formos acreditar naquilo que tá escrito na bíblia, atende pelo nome de Jesus Cristo.

 

Fato fato mesmo é que Kátia agiu corretamente, agiu como mãe e como servidora pública e num momento de risco, de adrenalina, de conflito aberto, teve a perícia necessária para neutralizar o bandido. Não foi execução. Foi legítima defesa.

 

Então, qual é o problema?

 

O problema não está em quem reage ao assalto e mata o assaltante. O problema está no cidadão e na cidadã de bem, que no conforto do sofá e do ar condicionado comemoram a morte de um semelhante. Essas pessoas estão doentes.

 

Elivelton era marginal, era bandido.

 

Era um jovem de 21 anos que poderia estar jogando futebol, sendo convocado para a Copa do Mundo. Elivelton poderia estar estudando na universidade, se preparando para se tornar médico, advogado, engenheiro ou professor.

 

Mas não, Elivelton estava com uma arma na mão, roubando pessoas e agora está morto. Isso significa a derrota da sociedade. É algo que deve provocar reflexão e não comemoração.

 

Mas por que as pessoas gozam com a morte de Elivelton?

 

1º) Porque a crise não é apenas uma crise política, não é apenas uma crise institucional. A crise é, sobretudo, civilizacional, e é isso que explica o fato de Jair Bolsonaro ter se tornado um player relevante no jogo político nacional. Estou convicto de que ele não vencerá, acredito mesmo que sequer disputará o segundo turno. Mas os 13% de votos que provavelmente receberá já são um problema civilizatório gravíssimo.

 

2º) Porque o corpo morto, o corpo de Elivelton, é corpo de preto, é corpo de pobre. Peço perdão pela repetição e volto a dizer que não estou defendendo Eliventon. Não estou defendendo bandido. Estou dizendo uma obviedade: Elivelton era pobre e preto. Era ‘matável’.

 

Os que gozam com a morte de Elivelton são movidos pela mesma lógica dos assassinos de Marielle. É aqui, neste aspecto, que é possível a comparação entre os dois eventos.

 

Tanto os que festejam a morte de Elivelton como os assassinos de Marielle olham para um preto ou para uma preta pobres e dizem: “Esse aí pode matar, tá liberado, dá em nada não”.

 

Pessoa ‘matável’ é aquele tipo de gente que morre de morte natural até quando é assassinada.

 

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

COMENTÁRIOS

3 respostas

  1. Excelente análise! Muto lúcida! Alguém precisava dizer exatamente isso: há uma lógica doentia que grassa neste país e que vem definindo a quem é permitido ter sua humanidade reconhecida e assegurada. Basta!

  2. Excelente. No fundo, me angustiava a análise pura e simples de bandido e mocinha. Há muitas reflexões a serem analisadas sobre esse caso. Obrigada.

  3. Excelente artigo. Mais claro e direto, impossível.

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