Manhã sufocante no antro fascista e mentiras do “capitão do povo”

Durante cerca de quatro excruciantes horas, observamos e registramos os delírios em verde-amarelo daqueles que vêem na continuidade de Bolsonaro a solução para todos os seus problemas, inclusive aqueles que ele mesmo criou
Bolsonaro discursa para Maracanãzinho com arquibancadas vazias

Parecia uma ideia de jerico (e talvez fosse mesmo) ir à Convenção do PL que oficializou a candidatura de Jair Bolsonaro. Gastar um domingo no Rio de Janeiro indo ao Maracanãzinho para estar no mesmo ambiente físico com aqueles que já nos agrediram na rua, que estão armados em volantes milicianas, prontos para atacar com discurso de ódio, punhos cerrados e armas de fogo quem quer que ouse apontar que o mito está com dificuldades enormes de aglutinar em torno de si os votos suficientes até para disputar o segundo turno.

Texto e fotos de Bia Abramo, jornalista convidada

Em trio, discutimos táticas e estratégias para estar lá, reportar, registrar e observar, sem levantar suspeitas de que estávamos numa missão de reconhecimento de terreno (minado). Tínhamos duas preocupações adicionais, além de sermos reconhecidas e identificadas como jornalistas sem credenciamento de imprensa. A primeira era a hipótese de haver algum tipo de agressividade física. A segunda, talvez mais complexa, a possibilidade de não conseguirmos conter as nossas reações espontâneas diante da, por assim, dizer máquina bolsonarista de encantamento.

Um Maracanãzinho com muitos camelôs expondo camisetas, bandeiras, faixas, adesivos, bonés, chaveiros verde-amarelos e filas mais ou menos organizadas nos aguardava às 9h30 de uma manhã ensolarada e quente. A expectativa de ver de perto o presidente, de participar do evento de lançamento oficial de sua campanha, circundava os grupos que chegavam a pé. Famílias, casais mais idosos, duplas de amigos, crianças e alguma militância organizada de candidatos locais circulavam pelas calçadas.

Minutos antes de chegar, a (minha) emoção futebolística deu um salto, quando vi o Maracanã da final da Copa de 2014 entre Alemanha e Argentina, e sem Brasil, depois do fatídico 7 a 1. Aquele verde-amarelo que, em muitas Copas do Mundo já vesti, foi escorraçado do meu guarda-roupa depois do jogo no Mineirão contra a Alemanha. O travo amargo de ter visto a presidenta Dilma ser objeto de vaias na abertura da dos jogos em São Paulo semanas antes do 7 a 1 já deveria ter nos advertido do caráter bélico, violento e ofensivo dos novos descontentes, mas então nem sequer imaginávamos o que o escracho público da primeira e até até agora única presidenta mulher do Brasil estava anunciando.

Oito anos depois, a debâcle moral, econômica e institucional está nas ruas, na inflação que corre solta, na miséria que grassa em cada esquina & favela e, sobretudo, nas constantes e reiteradas ameaças à democracia lideradas por Bolsonaro; ele, presidente eleito, que jurou governar com observância à Constituição e afronta, dia sim, dia também a Carta. Agora, eu ia ver com meus próprios olhos e ouvidos, sentir na proximidade física de corpos aglomerados em ambiente fechado (para o caldo de cultura negacionista, a pandemia é uma gripezinha; havia muito pouca gente que, como eu, ainda insiste em usar máscara) como pensa e reage a direita ressentida do chamado núcleo duro bolsonarista.

“Capitão do povo” no jingle

Além da constatação demográfica inicial, uma vez lá dentro era possível até se admirar com o adestramento para fazer um evento bonito, organizado e pacífico: as pessoas se acomodavam com gentileza, davam espaço para passagem, trocavam informações de como se deslocar por um ginásio ainda bastante vazio de forma cordata, ajudavam a organização do evento a distribuir bandeiras de plástico e panfletos com a letra do novo jingle que, depois de muito playback, acabaria sendo apresentado ao vivo pela dupla sertaneja Mateus & Cristiano (“É o capitão do povo/ Que vai vencer de novo”). Tudo muito profissional; afinal a captação de imagens & sons do evento por equipes de vídeo e fotografia estavam sendo editadas ao vivo para entrar no telão e, posteriormente, deverão ser usadas nas inserções de TV e rádio.

Em 2022, õ “capitão do povo” não conseguirá convencer nem o mais ingênuo bolsonarista que suas campanhas são espontâneas, baratas e feitas exclusivamente pela adesão “do povo” pelas redes sociais. A armação do espetáculo também contava com palco em T, coberto por tecido verde-bandeira, área vip embaixo do palco, para onde se dirigiam parlamentares, candidatos e os tradicionais arroz-de-festa, e um apresentador/animador de palco de voz tonitruante de radialista.

Mais arquibancada vazia enquanto Bolsonaro fala
Mais arquibancada vazia enquanto o “capitão do povo” fala

Nas mais de quatro horas de convenção, o apresentador organizou a turma do gargarejo, incentivou a platéia a decorar o jingle (ótimo, desconsiderada a pilha de elogios ao fascista) e ajudou a construir os diversos climas emotivos para a chegada, que se pretendia triunfal, de Jair Bolsonaro. Vinhetas sonoras com o trecho inicial do Hino Nacional, som de trovão (ou canhão) e até a reprodução do “trililili” da urna eletrônica, na nominata dos ministros, candidatos a governador, senador e parlamentares para os quais não se previu fala, só uma espécie de desfile aos pares e aos trios para serem fotografados e, eventualmente, ovacionados. Sim, o candidato que está afrontando o sistema eleitoral e insuflando seus seguidores a comprarem sua versão mentirosa de fragilidade das urnas eletrônicas, se permitiu uma nota cínica.

Da primeira vez que escutei o som característico do botão verde que assinala e confirma o voto, achei que podia ser um defeito ou espécie de alucinação auditiva; na segunda, talvez a microfonia?; da terceira, tive certeza da intencionalidade do gesto. Nesse momento, como um soco no estômago, veio a constatação de que, desta vez, a sede de recuperar uma vitória que parecia certa (afinal, nenhum candidato presidencial à reeleição desde a redemocratização foi derrotado nas urnas) não poupará recursos de propaganda política que se assemelham às piores narrativas ficcionais distópicas – do filme “Laranja Mecânica” à série “Black Mirror”.

É característica do fascismo jogar com a ambiguidade permanente. Se a truculência tem sido a tônica do discurso, dos atos presidenciais e do comportamento público de Jair Bolsonaro com jornalistas, mulheres e opositores, a convenção deveria transcorrer na chave do amor, do afeto e da alegria. Sintoma indicativo dessa dupla construção de imagem foi a orientação dada a candidatos homens que fossem acompanhados de suas esposas, todas muito maquiadas, todas muito loiras de cabelos alisados e todas com suas melhores roupas – de missa ou culto, de balada ou de rodeio, a depender o estilo de cada uma.

Minha crescente sensação, além do queixo travado e de um ou outro sorriso irônico (máscaras, para que parar de usá-las?), era a de ter entrado numa festa de casamento diurna cujo tema dominante seria a pátria, o que quer que signifique isso para o bolsofascismo. Aproximando-se o momento culminante, começaram a ser liberados setores de cadeiras mais próximas do palco e até a própria área vip, que permitia a circulação de um lado a outro do anel inferior de assentos reservados para mais convidados importantes. Em outras palavras, baixada a expectativa de público por parte da organização, os espectadores conseguiram chegar perto, bem perto do corredor formado por grades de ferro que isolavam a entrada da comitiva do “capitão do povo”.

Os seguranças da Presidência e os policiais federais, apesar de atentos, não impediram a chegada do público às grades. Consegui um lugar estratégico, na saída dos vestiários, ao rés do chão. Apesar da oportunidade de ver, fotografar, filmar e, eventualmente, tocar ou ser tocado por alguém da comitiva, havia pouco tumulto, mas muita agitação. As equipes de filmagem, com câmeras na mão, instruíam o público a sorrir, agitar bandeiras, mostrar cartazes próprios ou distribuídos por ali, onde se podia ler: Deus, Pátria e Família; Minha Bandeira Jamais Será Vermelha e o blablá que conhecemos das redes e memes.

A espera deixou o idoso, ao meu lado, irritado. De celular em punho diante da espera, do incessante movimento de assessores no corredor, soltou frases crescentemente enervadas como “Esse cara não vem?”, “Pô, ele só pode estar de sacanagem” e “Para quê tudo isso? Ele não é militar, não sabe se defender? Para quê tanta polícia?” foram algumas que consegui captar. Encravada no meu posto de observação e tendo de conter a expansão de cotovelos masculinos, acabei sendo abordada por duas mulheres. Uma mais jovem e de estatura baixa, a quem instintivamente ofereci dividir o meu espaço para que ela pudesse chegar mais perto. A segunda, idosa e igualmente mais baixa que eu, tocou no meu ombro e fez um pedido, em voz sumida e muita humildade: “A senhora me deixa chegar mais perto na hora que ele passa? Queria muito vê-lo, é meu sonho?”. Claro, minha senhora.

Mais arquibancada vazia e dois bolsonaristas embandeirados
Mais arquibancada vazia e dois bolsonaristas embandeirados

Quando finalmente, em passos rápidos e protegido por toda entourage, Bolsonaro e Michelle venceram os poucos metros até a chegada ao palco, acabei cometendo o erro de puxar a senhora mais idosa para que ela pudesse chegar bem perto das grades. Na impossibilidade de acomodar nós três, me ajoelhei no chão para não atrapalhar a visão das duas verdadeiras bolsonaristas. Como o celular estava ligado, tentei filmar o máximo, mas só obtive imagens confusas. Conseguia ver a movimentação de pernas masculinas apressadas, tensas e, olhando para cima, muitos sorrisos e fotos, numa espécie de carreira desenfreada.

Michelle do lado direito do presidente e dali debaixo, parecia ainda mais alta e elegante, acenando muito e sendo aplaudida. Minha perna tremia, seja porque estava ajoelhada e tentando me equilibrar, seja porque nunca havia estado tão perto, mesmo que por poucos segundos, de Jair Messias Bolsonaro. Naquele momento me senti fracassada: por generosidade aparente ou prudência excessiva tinha perdido o momento mais precioso daquelas mais de duas horas andando no ninho dos fascistas.

Voltei a circular pela quadra poliesportiva onde se concentravam os vips, agora ou reacomodados atrás do presidente, que se sentou para ouvir a primeira fala do dia, ou reunidos em torno de correligionários e amigos. Em tom de peroração política e imbuída de retórica religiosa, Michelle enfim entrou na campanha com tudo. Parecia muito à vontade ao microfone, falando de Deus, elogiando o marido, lisonjeando o plateia e edulcorando a condução irresponsável, inoperante do governo de Bolsonaro sobretudo para o público feminino presente ao Maracanãzinho.

Numa metáfora bastante óbvia, a tarefa da pastora era colorir de rosa a pele de cordeiro que esconde o lobo. Mulheres de todas as idades aplaudiam, concordavam com a cabeça ou diziam “glória a Deus”. Rapazes bombados olhavam com admiração a figura alta, esbelta da mulher do presidente.

O discurso do lobo, enfim iniciado às 11h30, se estendeu por toda uma hora, com muitas repetições, e mudanças de clima. Foi interrompido por palmas, gritos de “mito, mito”, apupos quando Bolsonaro referiu-se em tom francamente cínico à CPI da covid, atacou o adversário nas eleições com ofensas e pelas tenebrosas vaias aos “surdos de casaco preto” do Judiciário. Durante as alongadas explicações sobre seus feitos (?!?) no governo, muitas pessoas aproveitaram para tomar um ar, ir ao banheiro ou tentar comer alguma coisa na lanchonete. É como se dessem de ombros para a narrativa bolsonarista, uma vez que já a conhecem ou podem recuperá-la de maneira mais fácil depois, nas redes pelos clipes e memes que começaram a ser divulgados na tarde de ontem, e só se importassem pela emoção fabricada pelos momentos em que Bolsonaro largava seu discurso mais formal e persuasivo para fazer as bravatas de sempre e um discurso de ódio renovado, mais ainda preciso e incisivo.

Também a jornalista aqui tinha chegado num limite de mau-humor, feito de cansaço, calor e excesso de mentiras fascistas. Estava fácil de entrar e sair, por isso, passei para o lado de fora. Crianças exaustas e chorando, pessoas mais velhas precisando de água, casais com bebês pequenos dormindo no colo do pai começaram a abandonar o ginásio, enquanto retardatários chegavam para os momentos finais. Uma fila de três emissários de um pastor qualquer distribuíam santinhos de uma reza (paga). As moças que estavam oferecendo os panfletos com a letra da canção se reuniam em grupos ainda com bolos de papéis na mão, combinando o programa da tarde ou o almoço quando acabasse o trabalho.

Nessa leseira do meio-dia, precisei de uma água. Foi nesse momento que entendi que, de fato, minha carreira de repórter gonzo estava por um fio. No sentido contrário, vi um homem jovem com uma camiseta Ustra Vive. Cabisbaixo, nem fez contato visual. Sorte minha, pois, apesar da máscara, meu olhar através do óculos era de pouquíssimos amigos. Escapei por pouco de ter toda minha raiva, indignação e repugnância flagrada por um representante perigoso, que admira o torturador a ponto de estampar sua imagem no peito, dessa direita que ascendeu ao poder em 2018 e, agora, está desesperada para ficar. Todo meu esforço de contenção daquilo que estava pensando e sentindo, poderia ter ido por água abaixo.

Ainda arquibancadas vazias

“Não aceitar provocação, não aceitar provocação”, diziam as vozes da minha cabeça, relembrando as orientações de segurança clássicas de manifestações no período da ditadura. O moço nem estava me provocando, mas o mantra me salvou de cometer algum desatino e colocar em risco tanto minha integridade física como as das jornalistas que estavam comigo.

Respirei fundo, mas tive vontade de sair correndo. Só, mais tarde, à beira-mar e olhando as ondas, consegui me livrar do mal-estar de ter estado no antro do fascismo, mas ao mesmo tempo aliviada por ter saído com minha integridade física preservada, as faculdades mentais intactas e, sobretudo, com esperança de que esse pesadelo acabe.

Leia mais sobre a Convenção do “capitão do povo” AQUI

COMENTÁRIOS

2 respostas

  1. O lobo e a gazela verde alface não disfarçaram nem 1 minuto o cunho miliciano golpista da pretensa convenção .
    O pseudo poder do senhor na boca da dama dos 89 Queiroz , enojou os ares do Maracanãzinho transformado em curral do gado armado.
    Madame messiânica de origem familiar traficante robou a cena do ex milico expulso do exército , ao discursar fantasiada num hobby pós banho fiquei irado .Pensei em Marielle , Bruno , Dom , Genivaldo , Arruda , e daí frente minha vista turvou-se e tive ânsia de vômito , se lá estivesse vomitaria por cima do Ciro Nojeira , Lira e Praga Neto .
    Naquele instante entendi porque Bebel Gilberto pisou na bandeira brasileira .
    Apertarei 13 ñ por amor a Lula mas para dizer meu não rotundo ao canalha da fakeada , este fétido Bozarento .
    Luto e Luta !
    ??????

  2. Gostei muito da matéria, foram necessárias muita coragem e paciência para frequentar a convenção, grato que o fizeram e relataram o que aconteceu

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