Na Ocupação Tina Martins, casos como o narrado aqui se repetem, escancarando a potência e autenticidade da luta por casa abrigo na cidade.
Lya* é um nome fictício, que protege a protagonista desta história, uma mulher que sofreu abusos do homem e do Estado durante a trajetória que a trouxe até a Ocupação.
Mais uma manhã começava na Tina Martins, uma ocupação urbana de caráter feminista e propositivo que começou na madrugada do dia da mulher, em BH. Para aquelas que despertavam no prédio, que um dia pertenceu à UFMG e hoje, após 10 anos de abandono, cumpria novamente uma função social, esta era mais uma quinta-feira de luta e resistência.
Já são mais de 45 dias de Ocupação. Simbolicamente, 8 de março foi o primeiro deles. E porque esta data? Era só olhar ao entorno. Nos sorrisos e na pele marcada das mulheres recebidas pelo Movimento Olga Benário se estampava a razão de estar no antigo prédio abandonado: a luta contra o machismo e a violência contra a mulher.
A situação atual do Movimento é a de estar à procura de um local para continuar o trabalho de cuidado e acompanhamento de casos de violência. Como um grito por ajuda para as mulheres agredidas, a Ocupação Tina Martins é uma estratégia provisória, já que o prédio ocupado é no centro da cidade e locais de atendimento à vítimas de violência devem ser afastados e de difícil acesso para evitar novas agressões.
Porém, apesar das tentativas de negociação das militantes do Olga Benário, o risco de desocupação é iminente e não há uma proposta por parte do governo de um local para que o trabalho que elas vêm fazendo, com a ajuda de médicos, psicólogos, advogados e outros profissionais possa continuar.
Conheci Lya* por acaso. Desde que nasceu a Ocupação, a Mídia NINJA e os Jornalistas Livres têm acompanhado o trabalho das mulheres do Movimento Olga Benário, que reivindicam que o poder público cumpra o seu dever para com as mulheres, cidadãs de direito, e deem à elas suporte, cuidado, atendimento médico e psicológico e abrigo nos casos de abuso e outras formas de violência de gênero.
Neste processo, tive a oportunidade de dormir e acordar ao lado delas por alguns dias. Me propus, junto com outras colegas, a somar nas equipes de trabalho da Tina, e comecei a ajudar na Comunicação e nas Redes Sociais da Ocupação. Num gesto simples, enquanto eu corria para fotografar uma ação cultural que ocorria no primeiro piso da Ocupação, fui interpelada pelo sorriso de Lya*, uma jovem transsexual, com seus aparentes vinte e poucos anos de idade, e a seguinte pergunta: posso te maquiar?
Tímida, deixei. Fomos para perto de seu colchão, uma acomodação simples, que ela dividia com suas duas companheiras – um caso de poliamor -, mas tão reconfortante quanto o sorriso vitorioso dela, que estava de pé mesmo após ter passado por tantos baques na vida.
O batom ia ser azul. Enquanto ela escolhia qual tom de sombra passar, foi me contando um pouco da sua vida. Carioca, ela deixou seu estado para vir para Minas em busca de recomeçar a vida. Seu trabalho? É muito difícil conseguir emprego sendo transexual no Brasil. Lya* já faz tratamento hormonal há 10 anos, segundo ela, os hormônios “deixam as pessoas meio loucas”.
Entre uma pincelada e outra de sombra de tons azul e prata, escolhas dela para combinar com o meu jeito, Lya* ia narrando suas relações, a negação da família, o fato de a mãe não reconhecê-la como mulher mesmo sendo algo visível desde a infância, e a ausência da figura materna. As duas não se falam há mais de 10 anos, e quando ela entra em contato, só recebe silêncio como retorno.
Com o cabelo trançado e longo e o toque delicado, Lya* continuava a me maquiar com paciência, limpando os borrados do meu olho, que não conseguia ficar parado durante nossa conversa. Ela era casada há 4 anos, em uma relação com duas mulheres. Uma transexual lésbica. E foi para a Ocupação Tina Martins após ter sofrido violência sexual em um abrigo público da prefeitura.
Ao tentar denunciar, ela teve sua voz calada. “Não vai dar em nada mesmo”
Lya, como tantas outras mulheres, negras, lésbicas, trans, mães, mulheres do interior, donas de casa, se encontra hoje amparada pela iniciativa do Movimento Olga Benário. E, fora da Ocupação Tina Martins, elas seriam engolidas pelo sistema, que não conseguiria encaixá-las em nenhum lugar e negligenciaria suas dores e as violências que elas sofreram e ainda sofrem na sociedade.
O local precisa de doações de alimentos e de mais pessoas dispostas a embarcar no combate ao machismo e construir a casa abrigo. Enquanto isso, a resistência de Tina continua, com os braços aguerridos de muitas Lyas, Marinas, Claras, Isabelas e Carolines.