Por RODRIGO PEREZ OLIVEIRA, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia
Não se fala em outra coisa a não ser na crise diplomática entre os Estados brasileiro e Israelense instaurada pelo discurso do presidente Lula na Etiópia no último dia 17. Quando se referiu ao massacre de Israel contra o povo palestino, o mandatário brasileiro acionou a imagem do holocausto judeu na Segunda Guerra Mundial. Para Lula, Israel está promovendo um genocídio em Gaza, algo semelhante ao que Hitler fez contra os judeus entre o fim dos anos 1930 e meados da década de 1940.
A analogia, é claro, teve repercussão em Israel, no Brasil e no restante do mundo.
Não sei se Lula improvisou ou se a declaração foi calculada junto a seus assessores especializados em política externa. Impossível saber. Seria inútil especular.
Creio que ganhamos mais na análise se dividirmos a reflexão em duas partes: o mérito da comparação e seus efeitos políticos, dentro e fora do Brasil.
No mérito, a comparação feita pelo presidente é adequada e historicamente possível.
O termo “genocídio” não existia antes de 1944 e foi criado em meio ao trauma do extermínio dos judeus perpetrado pelo III Reich, mas jamais esteve restrito exclusivamente ao holocausto. Até mesmo o conceito “holocausto” já foi usado pra definir outras experiências de violência, como fez o intelectual martinicano Aimé Césaire, que utilizou a palavra pra definir a colonização europeia na América, África e Ásia.
Os conceitos políticos estão sempre sendo disputados!
No significado que se cristalizou ao longo das últimas décadas, “genocídio” acontece quando atos deliberados de destruição colocam em risco a existência de um grupo nacional, étnico, cultural ou religioso.
Foi exatamente isso que aconteceu na Segunda Guerra Mundial com os judeus. É o que está acontecendo agora com os palestinos em Gaza. As situações são muito semelhantes.
“Mas na Segunda Guerra Mundial morreram 6 milhões de judeus, enquanto em Gaza morreram cerca de 30 mil pessoas”.
Argumentar desse jeito não faria o menor sentido, pois sugeriria um limite muito condescendente com a barbárie. Se somente a partir de 6 milhões de mortos é possível falar em genocídio e extermínio em massa, chegaremos no absurdo de supor que até 5 milhões e 900 mil mortos seria algo aceitável. Seria supor que 2 milhões de mortos é tolerável. Significaria acreditar que 30 mil palestinos motos não é tão grave assim.
Recuso a aceitar que alguma pessoa de boa vontade seja capaz de raciocinar nestes termos.
Portanto, sim, a comparação feita por Lula está correta. No que se refere à prática genocida, o sionismo está próximo do nazismo e Netanyahu está ombro a ombro com Hitler.
Sobre os efeitos políticos da analogia, a conversa é outra. Aqui, podemos desdobrar a discussão em dois âmbitos: externo e interno.
Ao verbalizar explicitamente o que o mundo está pensando, Lula se coloca como protagonista nesse debate, afirmando-se definitivamente como uma das principais lideranças do sul global. A analogia feita por Lula não está separada da totalidade do discurso, que teve como grande argumento a defesa de uma nova governança mundial, com maior protagonismo do sul global. Esse é o núcleo duro da política externa de Lula desde o primeiro mandato.
Não podemos esquecer que recentemente a África do Sul acusou formalmente Israel de genocídio no Tribunal Penal Internacional. A ação sul africana e a declaração de Lula em Adis Abeba fazem parte de um mesmo movimento na história da diplomacia contemporânea: o eixo sul-sul reivindicando mudanças na geopolítica herdada da Segunda Guerra Mundial.
Nesse sentido, Lula compra briga com Israel, mas se aproxima de seus aliados mais estratégicos. O fato de nenhuma liderança global ter se manifestado contra Lula (a não ser o próprio Netanyahu, é claro), sinaliza que na tal “crise”, Lula ganha mais do que perde. Nessa peleja, persona non grata mesmo é o genocida sionista que governa Israel e que a muito custo, e sangue palestino, consegue se manter no poder.
Por outro lado, a repercussão doméstica parece ser menos favorável ao presidente Lula.
Primeiro, porque a situação política brasileira está longe da estabilidade. Apesar de o bolsonarismo estar sendo acossado pela Justiça em virtude da trama golpista que resultou no 8/1, o governo Lula enfrenta grandes dificuldades no Congresso Nacional. Governar o Brasil nunca foi tão difícil. A instituição Presidência da República foi bastante enfraquecida na última quadra histórica, com a autonomia do banco central, com o teto de gastos e com o orçamento secreto.
Sabemos bem a força do lobby israelense no mainstream midiático brasileiro e a importância do “Estado hebraico” na imaginação religiosa dos evangélicos. O desgaste de Lula nas últimas 48 horas foi intenso e os desdobramentos em sua popularidade ainda não podem ser mensurados.
Tenho dúvidas se a agenda do massacre israelense em Gaza justifica estrategicamente tamanho desgaste. Sabemos bem que energia política vem de fonte não renovável. A cada desgaste, o governo perde um pouco do fôlego.
Talvez fosse melhor investir os recursos disponíveis na tentativa de retomar definitivamente o controle do orçamento. Disso, de fato, depende o futuro do governo.
Israel e a Palestina estão muito longe. Já Arthur Lira e seus cúmplices estão bastante próximos.
Como não dá pra ter tudo nessa vida, a política é a arte das escolhas, e das renúncias também.
Obs. A segunda charge é de Nando Motta e a terceira de Claudio Duarte