Livro de poesias com críticas sociais é censurado em São José dos Campos

Para George Furlan, autor de “Beirage”, o falso moralismo é uma desculpa para censurar as críticas sociais e políticas da obra. Foto: Daniel Brás

Essa semana, o autor do livro de poesias “Beirage”, George Furlan, teve todas as ações promocionais de seu projeto aprovado e em execução, suspensas pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo – FCCR, após uma repercussão negativa de dois poemas inseridos no livro, “Segunda-Feira” e outro sem título, com críticas à Ditadura e a favor da liberdade de gênero. O movimento contrário à obra foi instigado por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro e demais movimentos conservadores da cidade de São José dos Campos, no interior de São Paulo.

De acordo com George Furlan, autor da obra, o livro com 103 páginas e 70 poemas propõe uma análise crítica sobre os problemas sociais e estruturais atuais em nosso país. “Até o momento realizei cinco, dos seis lançamentos propostos no projeto. Um deles, que deveria ocorrer na Biblioteca Pública Hélio Pinto Ferreira, foi barrado pela coordenadora do espaço, mesmo sendo autorizado pela Biblioteca Pública Cassiano Ricardo. Essa foi a primeira censura”.

“Acredito que o ‘Beirage’ incomoda porque parte da inquietação de quem é posto à beira do macrossistema econômico e social por motivos quaisquer e tem como fonte de poesia cenas recortadas do cotidiano, manchetes, reportagens televisivas, ou seja: a matéria prima são os acontecimentos. Se são os fatos a matéria prima, como se omitir diante polêmicas?”, questiona.

Ainda segundo Furlan, no último dia 15, até mesmo uma entrevista concedida ao Portal Meon, foi alvo de censura e manipulações. “A matéria é sobre minha obra, mas fala sobre a concepção do Movimento Brasil Livre – MBL e do Partido Social Liberal – PSL. Censuram as palavras dos poemas. Não contextualizaram meu projeto e nem a obra. O fato é que meu livro é direcionado a maiores de 16 anos e as palavra utilizadas em poemas específicos estão de acordo com a classificação etária, sem hipocrisia. O livro não é, nem nunca será baseado em Olavo de Carvalho, como está sendo divulgado nas redes sociais por alguns agentes do poder público local. Os comentários hostis decorrentes da publicação são de pessoas que não conhecem minha obra”, diz.

Segundo o autor, no dia 16, o jornal O Vale também realizou uma reportagem informando que o livro seria retirado das bibliotecas que o receberam gratuitamente como previa o edital público que apoiou sua publicação. “No dia seguinte, me deparei com outra manchete alegando que minha obra seria recolhida das bibliotecas públicas da cidade, como de fato foi”.

Furlan ressalta que tendo em vista o cenário e a proporção que a censura vêm tomando, ele e diversos coletivos artísticos e culturais estão promovendo ações de resistência. “Estamos nos articulando por meio de um evento gerido pela Casa Coletiva Comuna Deusa (Coletivo LGBT) e outros Coletivos, para tratar desta e outras censuras a projetos culturais e mobilizando assim ações, para o dia 21 de maio, quando a pauta será abordada na Câmara dos Vereadores de São José dos Campos”.

Furlan também enviou à deputada estadual de São José dos Campos, Letícia Aguiar (PSL), a seguinte mensagem: “Não há criação sem ideologia, não há arte sem ideologia, não há ensino sem ideologia, não há gente sem ideologia, nem matéria de jornal existe sem ideologia. Seu Presidente chama manifestantes de ‘imbecis úteis’ e eu que sofro a censura?”.

O produtor cultural Murilo Magalhães, um dos organizadores da Casa Coletiva, ambém se manifestou explicando a problemática da censura sobre o poeta: “Existe um edital do Fundo Municipal de Cultura que se chama Primeira Obras, o qual garante a oportunidade para que novos escritores lancem seus livros. Furlan foi contemplado pelo edital. O Fundo Municipal de Cultura é um patrimônio da população de São José dos Campos e uma conquista histórica dos artistas do município, assim como também a Fundação Cultural Cassiano Ricardo. É muito difícil para alguém que esteja começando a ser escritor a publicar um livro. E, sendo a cultura um direito, é importante que o poder público contribua nesse sentido. Arte é expressão opinativa. Arte é expressão de algo. O livro é um conjunto de poemas sobre angústias e críticas sociais a partir da visão do autor. Há um poema de fato com um palavrão. Mas na maioria do livro há poemas com críticas sociais (sem palavrão) ao atual governo, à política, à violência policial, e outros temas sociais. Aqueles que criticam o livro não mencionam somente o palavrão mas também condenam a crítica ao atual presidente”, argumenta.

“Não estão preocupados com a moralidade e os bons costumes, mas sim com uma produção artística crítica ao conservadorismo e o atual governo. Isso é censura!”

“Existe uma série de livros em bibliotecas públicas com palavrões. Irão esvaziar ou fechar as bibliotecas? Poderíamos questionar o fato dos defensores do atual presidente utilizarem o dinheiro público para realizarem discursos de ódio e promoverem a violência. Porém, defendo a democracia. E na democracia as pessoas têm o direito à liberdade de expressão. Obviamente que deve haver restrições e classificação indicativa a alguns conteúdos. Hoje censuram esse livro. Amanhã, irão querer censurar uma peça de teatro que critique o atual governo. Depois, não poderemos mais ser artistas. Não podemos aceitar essa situação. A cultura é um direito”, finaliza Magalhães.

O músico Bruno Mantovanni, um dos criadores dos manifestos culturais em São José dos Campos, como o “FestivATO #elenao”, aponta: “Era de se esperar atitudes assim no ambiente social em que vivemos. A censura é um reflexo do que vem acontecendo e do poder predominante no cenário político no país nos últimos anos. O caso do autor George Furlan é o ensejo de mais uma tentativa de desmonte, faz parte de uma estratégia que é contra o financiamento público ao setor cultural e contra a liberdade e o direito de se expressar. É uma sequência que já vem sido pautada diversas vezes pelos movimentos ultradireitistas que buscam destruir a mediação do Estado na política pública de cultura. A arte sempre colocou a sua poética e sensibilidade para refletir o momento contemporâneo. A arte produz um saber sobre a condição humana e expressa a visão de mundo do artista, um reflexo e expressão do seu tempo. O sentido da arte pode ser mais de um, porque o contato com a obra também permite que se crie por meio de suas interpretações. Por isso não há interpretação literal ou absoluta, existe sim um universo simbólico que permite abstrair novos ângulos dentro de um contexto histórico, social, cultural e artístico”.

“A obra ‘Beirage’, cumpre o seu papel artístico, o de provocar perguntas ao invés de propor respostas, exercendo seu direito crítico”.

Segundo a coordenadora da Rede Emancipa e Secretária Geral do PSOL em São José dos Campos, Tamires Arantes, o Fundo Municipal de Cultura é uma conquista democrática da classe artística joseense. “O motivo da sua existência é promover as diferentes expressões da cultura popular aqui em nossa região. Fica claro que a suposta questão moral a respeito do conteúdo do livro é, na verdade, uma cortina de fumaça para facilitar que um setor político imponha seus valores sem opiniões contrárias. É essa a essência da polêmica. Não me preocupa que critiquem o governo, me preocupa a liberdade de expressão ser usada para a promoção do racismo, da violência contra mulher, contra a educação e a cultura, em suas diversas formas de preconceito, como faz, sem vetos, Jair Bolsonaro”, ressalta.

Já, em contato direto com Thomaz Henrique Barbosa, coordenador do MBL no Vale do Paraíba, o recolhimento da obra não é mais viável. “Eu li o livro, fiquei curioso. Ele é muito ruim. Tem que ler Bocage e Gregório de Matos. É Olavo de Carvalho da poesia. Só chama atenção falando palavrão. Muito fraco. Sou contra o recolhimento. Já pagou essa porcaria, agora não adianta”, finaliza.

A reportagem tentou contato com a deputada estadual Letícia Aguiar (PSL), mas não obteve sucesso. Durante a 31ª Sessão Ordinária na Câmara de São José dos Campos, diferente das vereadoras Amélia Naomi (PT) e Dulce Rita (PSDB), vereadores como Dr. Elton (MDB), Ranata Paiva (PSD), Lino Bispo (PL), Sérgio Camargo (PSDB), Flávia Carvalho (PRB) e CYBORG (PV), criticaram a obra, informando sobre os requerimentos abertos junto à FCCR, para averiguar junto aos avaliadores dos projetos, a aprovação da obra, visando punir os responsáveis. Já a Fundação Cultural Cassiano Ricardo informou que por hora analisa as denúncias realizadas.

 

Abaixo segue, na íntegra e sem censura, o poema “SEGUNDA FEIRA”:

 

Abaixo a tirania

pau no cu da monarquia

pau no cu da autocracia

pau no cu da meritocracia

pau no cu da democracia representativa

pau no cu do Bolsonaro

pau no cu da bancada evangélica

pau no cu da bancada agropecuária

pau no cu da bancada da bala

pau no cu dos militares

pau no cu da milícia

pau no cu da polícia

e pau no cu da política que só nos fode

 

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