Livraria Vermelha: a revolução dos livros rebeldes a preços camaradas

foto: Vlademir Alexandre/Agência Saiba Mais

Por Rafael Duarte, da Agência Saiba Mais 

“Não tenho pressa, estou lendo um livro”. A frase, inspirada na mensagem do para-choque de algum caminhão perdido pela estrada, é um dos slogans da Maricota, uma Kombi vermelha, modelo 2005, que trafega pelas ruas de Natal (RN) desde o final de 2017 com status de livraria.

O responsável por transformar um meio de transporte num meio de cultura é o bancário cearense Hermes Halley, 37, apaixonado por kombis, livros e política. Dono de três Kombis (Maricota, Charlotte e Rizoflora), Harley une hobby e trabalho.

Definitivamente, a Maricota não é uma livraria comum. Best-sellers comerciais, livros de autoajuda e a bíblia, por exemplo, não estão à venda nas prateleiras instaladas no interior da Kombi, reformada sob encomenda em Santa Catarina. Em compensação, o que você imaginar de títulos sobre política, especialmente ligados à esquerda, além de biografias e obras relacionadas à cultura brasileira estão à disposição dos leitores a preços populares.

Aliás, populares não. Seguindo a linha da Maricota, são livros rebeldes a preços camaradas. Isso porque, na visão do proprietário, a Maricota tem um papel a cumprir: o de resistir diante das imposições do mercado.

– A Maricota é um enfrentamento à imbecilização da linha mercadológica das livrarias. As livrarias tradicionais tem um modelo. Deveriam haver milhares de livrarias vermelhas como a Maricota. Seria um passo importante para a democratização do acesso à leitura no Brasil.

Os livros à venda na Maricota são comprados diretamente das editoras ou adquiridos junto aos próprios autores. Daí a possibilidade do leitor adquirir obras a preço de custo.Outra forma de aproximar a Kombi dos leitores é o empréstimo dos livros. Por meio de um cadastro simples, você leva um livro para casa com o compromisso de devolver à livraria num tempo combinado.

Em média, Hermes inclui apenas R$ 5 sobre o preço de capa que sai da gráfica, verba que, segundo ele, dá para pagar os custos do combustível e da manutenção da Kombi, além de contribuir para a aquisição de novos exemplares.

A proposta não só facilita o acesso à leitura como revela os lucros de livrarias comerciais que chegam a cobrar 50% a mais sobre o preço de capa.

– Quando a livraria vende a R$ 40 eu compro por R$ 25 e vendo a R$ 30. É muito mais barato que nas lojas oficiais. Para mim é mistura de um hobby com preocupação social. Com esse “lucro” eu consigo comprar outros livros e ainda manter a Maricota. Foi assim, por exemplo, que o Zeca Baleiro me vendeu os livros dele. Quando mostro as fotos e falo sobre o projeto, não tem uma editora que não se solidarize. Até porque para as editoras é a mesma coisa. Eles vendem para mim pelo mesmo preço que passam para as livrarias. Só que essas livrarias têm outra proposta.

Livraria Vermelha: livros rebeldes a preços camaradas

Mais do que vender para lucrar, a preocupação de Halley está na formação de leitores críticos. Como o espaço da Kombi é pequeno, o livreiro optou por definir uma linha editorial específica que lhe dê condições de oferecer mais opções sobre poucos temas, geralmente livros que o público não tem acesso nas casas tradicionais do ramo.

– Quis unir a ideia de criar uma livraria popular e cultural a preços acessíveis. O objetivo da livraria vermelha não é o lucro, mas a manutenção.

A ideia de transformar uma Kombi numa livraria nasce do objetivo de levar os livros até as pessoas. Ele compara o projeto à relação entre as mídias sociais e a imprensa tradicional.

– A mídia tradicional precisou migrar para as redes também porque queria continuar impondo às pessoas um determinado local e horário. Mas todo mundo quer ter seu próprio tempo. Uma livraria itinerante é o tempo dos leitores. É quase uma livraria online sem perder o charme do instante do livro.

Bares e praças

A Maricota tem rodado bares de Natal, especialmente nos finais de semana, mas ainda não tem uma programação fixa. Um dos pontos mais assíduos da Livraria Vermelha é o Bar Cultural Acabou Chorare, no bairro de Ponta Negra, onde Hermes Halley é um dos sócios, ao lado do colega bancário Tito Lívio.

Aliás, Hermes reveza o próprio tempo entre as funções de motorista da Maricota, vendedor da Livraria Vermelha, sócio de bar e bancário, profissão que lhe garante a principal renda da casa.

Ainda assim, a Maricota já foi vista em praias, bares das zonas Sul e Leste da capital potiguar, além eventos públicos e gratuitos da cidade. O livreiro pretende ampliar em breve o itinerário e usar a Kombi para recuperar as praças de Natal.

– Estamos circulando basicamente pela Zona Sul e Leste. Chego com a Maricota em bares como intervenção cultural. Mas quero ampliar para um café também. Como as pessoas não tem hábito de ir para livrarias de bairro, como em outros países da America do Sul, eu vou até as pessoas. Em vez de ter ponto fixo, onde tiver um evento cultural eu vou. E depois começarei nas praças para aproximar as pessoas da cidade.

Projeto para futuro inclui recuperação das praças da cidade

Aonde a Maricota chega, o sucesso é garantido. Mesmo em bares, onde geralmente as pessoas vão para beber, comer e conversar, a chegada dos livros tem sido vista com bons olhos.

– A livraria chama muito a atenção. Algumas pessoas estranham, mas depois dão os parabéns. E quando vêem que é mais barato, compram. A gente se acostumou com aquela coisa de “ou eu leio ou vou para o bar” e “ou eu leio ou para o show”. Limitamos isso em algum momento, mas quando é acessível, vemos que é possível fazer os dois.

Komboio potiguar: literatura, música e teatro

A expectativa de Hermes Halley é colocar na rua ainda em 2018 o Komboio Potiguar. O projeto transmídia une Maricota às irmãs Charlotte (cor verde, modelo 1994) e Risoflora (cor laranja, modelo 1974) e leva, num autêntico comboio, uma programação que inclui musical de samba, esquetes teatrais, biblioteca itinerante e ações formativas, como oficina de leitura, poesia e percussão formativa para jovens e adultos.

A ideia é aliar cultura ao turismo. O Komboio com as três kombis de Hermes prevê a passagem por locais turísticos da cidade e formação de jovens da periferia. A iniciativa está na fase de captação de patrocinadores.

As três kombis, inclusive, mudarão de nome durante o projeto para homenagear três mulheres importantes do Rio Grande do Norte. Maricota, por exemplo, será a Dona Auta (poetiza Auta de Souza), Charlotte vira Dona Nise (referência à médica alagoana Nise da Silveira) e Rosoflora ganhará o nome de Dona Cacilda (homenagem à potiguar Cacilda Bessa, primeira vereadora mulher do Brasil).

– Uma função desse projeto é resgatar a história das mulheres nordestinas, incentivar as pessoas a pesquisarem, a descobrir nossa história.

Paixão por Kombis

Maricota, Charlotte e Rizoflora estão ligadas ao ideal de juventude de Hermes Harley que imaginava ganhar o mundo percorrendo estradas dentro de uma Kombi. Um sonho que virou realidade para grupos de pessoas nos anos 1960/70. A partir da década de 1980, porém, a Kombi foi reduzida ao comércio.

– A Kombi tem esse viés alternativo, mas foi pasteurizada depois, virou apêndice para comercio. Tem custo barato e força para carregar coisas. A ideia do resgate da Kombi vai no sentido de quebrar a pasteurização da Kombi, a branca, totalmente mercadológica. Conheço muita gente em Brasília, São Paulo, Paraná que tem flores, sebos, brechós, colecionadores que apresentam como linha de exposição, é uma relíquia que as pessoas têm.

Dono de três Kombis, todas reformadas e transformadas em confortáveis veículos, Hermes defende o modelo como um estilo de vida:

– A Kombi é o símbolo cultural de uma geração e de uma época. Quando você usa a Kombi fazendo algo diferente é um resgate histórico, não deixa de ser uma nostalgia. Essa época que sirva de exemplo para que as pessoas possam incentivar novas mudanças.

 

Hermes Halley: de anarquista à dono da Maricota

 

Hermes Halley é bancário, motorista da Maricota, livreiro e sócio do Bar Cultural Acabou Chorare

Hermes Halley Albuquerque Neto tem 37 anos de idade e nasceu em Fortaleza (CE). Bancário, é funcionário de Caixa Econômica Federal desde 2006. A militância política de Hermes começou ainda na juventude pela identificação com o movimento anarquista. Na capital cearense, participou ativamente de uma rede underground que incluía marxistas libertários, anarquistas e a esquerda petista. “Fortaleza era uma mini Itália”, diz.

A política que o seduziu também o decepcionou algumas vezes. Numa das edições do Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) teve os primeiros contatos com as diferentes linhas de esquerda partidária. As brigas internas das correntes, que ele classifica como “disputa do poder pelo poder”, afastaram o anarquista Hermes dos partidos políticos até janeiro de 2018.

– Minha atuação política foi sempre no sentido de questionar a política de disputa pelo poder, mas ciente que a forma de criticar isso também pode ajudar a direita. Então, ao mesmo tempo que não devemos fechar os olhos, temos que saber como nos posicionar. A direita aproveita a divisão da esquerda.

Hermes sempre preferiu guardar distância do sectarismo. Transitava entre anarquistas, petistas e militantes de outras siglas. Pelo estilo acabou taxado por todos os lados. Os anarquistas o chamavam de “anarco-petista” e, para os petistas, era “o anarquista doido”.

Hoje, Halley se define como alguém que toma partido. Foi por isso que, diante da perseguição política ao ex-presidente Lula, ele decidiu se filiar ao PT dia 24 de janeiro, quando o TRF4 condenou Lula em segunda instância:

– Sempre busquei o enfrentamento à injustiça. Se buscarmos isso vamos avançar e tonar o mundo um espaço melhor. O capitalismo é um sistema muito injusto e um dos efeitos dele é que torna a Justiça insensível. Por isso não posso dizer que um partido de esquerda é a mesma coisa que um partido de direita, que uma eleição entre Dilma e Aécio é a mesma coisa. Espero que as pessoas tenham percebido isso depois do golpe. Minha linha de atuação como ser humano é pela esquerda.

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