Lideranças cobram providências após atentado a cacique Lúcio Tembé, no Pará

Autoridades são questionadas sobre o histórico de violência e insegurança em territórios indígenas e quilombolas disputados pela empresa Brasil BioFuels (BBF)

Por Cícero Pedrosa Neto da Amazônia Real

Autoridades são questionadas sobre o histórico de violência e insegurança em territórios indígenas e quilombolas disputados pela empresa Brasil BioFuels (BBF), referência latino-americana na monocultura do dendê para a produção de biodiesel e óleo de palma. O Ministério Público Federal investiga o atentado ao cacique Lúcio Tembé e aponta a empresa como possível responsável.

Belém (PA) – Era início da madrugada do último domingo (14) quando o carro do cacique Lúcio Tembé atolou na estrada que dá acesso à aldeia Turé-Mariquita, no Vale do Acará, município de Tomé-Açu, no nordeste paraense. A escuridão, acentuada pela poeira e pelo denso dendezal que circunda a via, escondia a motocicleta que seguia o cacique e o outro indígena que o acompanhava. Lúcio Tembé pilotava o veículo do filho, Paratê Tembé, outra conhecida liderança local, quando foi surpreendido pelos pistoleiros.

“Eles atiraram pra matar, miraram na cabeça do meu pai”, contou Paratê à Amazônia Real, ainda tomado pelo susto e pela revolta, quando tentava transferir o pai de avião para uma UTI, em Belém, na manhã seguinte ao atentado. Após o ataque, o cacique foi socorrido na unidade de saúde de Tomé-Açu e precisou esperar cerca de dez horas para conseguir um leito na capital. O tiro o atingiu de raspão e os estilhaços feriram o pescoço da vítima, que segue em estado grave e aguarda por cirurgia no Hospital Metropolitano, localizado em Ananindeua, região metropolitana de Belém.

“A gente só pede justiça para que isso não continue acontecendo, tanto na nossa região, quanto no Brasil todo, o massacre dos povos indígenas. Nós pedimos intervenção do estado pela vida do nosso povo. Não só pela vida do bioma, não só pela vida das árvores em pé, porque não existe árvore em pé se nós não estivermos vivos”, protestou Paratê em vídeo divulgado à imprensa.

O filho critica a falta de respostas do governo estadual aos conflitos na região e a demora na manifestação da Secretaria Estadual do Povos Indígenas (Sepi) sobre os fatos. “Não queremos secretarias que venham apenas servir de fachada para que a COP (Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas) venha pra cá dizer que protege o meio ambiente. Nós queremos salvar nossas vidas também. Nós queremos proteger a floresta e salvar nossas vidas também”, pontuou Paratê. Criada este ano, a  secretaria é liderada por Puyr Tembé, do mesmo povo que o cacique Lúcio e Paratê, mas de outra região do estado.

Puyr Tembé postou uma nota da Sepi nas redes sociais em que repudia o atentado sofrido pelo cacique e coloca-se “à disposição das autoridades para auxiliar no que for necessário”. Também informa que Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (Segup) e equipes da Polícia Civil e da Polícia Militar do Pará atuam na coleta de provas que possam elucidar o crime. O caso é investigado pela delegacia de Quatro Bocas, município da região em que ocorreu o ataque. 

Em reunião convocada pelo MPF na tarde de hoje (15), lideranças indígenas e quilombolas cobraram providências da justiça e dos órgãos de segurança, denunciaram e pediram a substituição de agentes públicos que atuam na região.

MPF e lideranças suspeitam de BBF como autora do ataque

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O episódio se soma aos inúmeros casos de violações de direitos humanos e ambientais ocorridos na região, onde estão, cercadas por milhares de pés de dendê, a Terra Indígena Turé Mariquita (a menor em território do Brasil), do povo Tembé, com  13 aldeias; a Terra Indígena Turyuara, que aguarda homologação e possui três aldeias; e seis comunidades quilombolas, reunidas em torno de uma associação, a Amarqualta, com cerca de 350 famílias. Os conflitos agrários na região estão ligados a décadas de invasões e grilagens dos territórios, cuja ocupação ancestral data de pelo menos 200 anos. 

Os conflitos ganharam novos contornos com a chegada da monocultura do dendê na região, em 2009, com uma subsidiária do grupo Vale, a Biopalma Amazônia. O momento era de aposta no biodiesel e o governo à época, liderado pelo presidente Luiz Inácio Lula da  Silva (PT), na época em seu segundo mandato, apostava no óleo de palma como incremento à soberania energética do país. 

O que não se dizia na época é que os plantios de dendê estariam sobrepostos aos territórios ancestrais dos povos Tembé, Turyuara e às comunidades quilombolas remanescentes de negros escravizados em engenhos de cana-de-açucar, localizados às margens do rio Tocantins. Em 2018, a Biopalma vendeu seus ativos para a empresa BBF (Brasil BioFuels), considerada a maior produtora de óleo de palma da América-Latina, com sede em cinco estados amazônicos: Acre, Rondônia, Roraima, Amazonas e Pará.

“Para o MPF, é possível que esse seja mais um episódio de violência que os indígenas Tembé de Tomé-Açu estão sofrendo por causa de conflito com empresas produtoras de dendê na região, o que impõe a atuação dos órgãos federais,  tendo em vista que a disputa envolve direitos coletivos dos povos indígenas. Desde a instalação da empresa Biopalma ao redor da Terra Indígena Turé Mariquita, em Tomé-Açu, vários episódios de violência contra os indígenas já ocorreram, relatam os ofícios expedidos pelo MPF neste domingo”, diz nota enviada à imprensa pelo Ministério Público Federal,  acrescentando que “os Tembé reivindicam várias áreas em que hoje existe plantação de dendê, pois consideram que essas áreas pertencem à comunidade indígena.

Edvaldo Turyuara, cacique da aldeia Pintar, do povo Turyuara, também acredita que os pistoleiros agiam em nome da empresa. “Nós temos um conflito juntamente com a BBF e o único que a gente vê que hoje quer nos parar, nos matar, acabar com o índio, como eles dizem que querem, tirando o índio do lugar deles,  é a empresa BBF. Nós não temos  nenhum outro inimigo aqui, só eles”, pontua.

Ele conta que já ouviu um funcionário da BBF dizer que o foco da empresa é “parar” as lideranças que atuam na defesa e reivindicação dos territórios tradicionais. “O foco deles são os caciques e as lideranças, entendeu? O foco são as lideranças maiores dos parentes. Quem paga os pistoleiros pra seguir e correr atrás da gente? E os pistoleiros vêm atrás da gente sabendo onde  a gente mora, as estradas onde a gente trafega…”, diz o cacique, que é primo de Lúcio Tembé.

Em nota à reportagem, a BBF negou qualquer envolvimento com o caso e repudiou a conexão da empresa com o ataque ao cacique Lúcio Tembé. “O Grupo BBF (Brasil BioFuels) refuta qualquer ilação a respeito da sua ligação com o ataque ao cacique Lúcio Tembé e espera que as autoridades esclareçam o mais rapidamente possível os fatos. A companhia se solidariza com as vítimas e estima rápida recuperação da saúde do cacique”. Ainda sobre o ocorrido, o grupo afirma que não há “qualquer fato ou evidência que conectem o envolvimento da empresa com o fato ocorrido”.

Acusações graves

Edvaldo Turyuara, cacique da aldeia Pintar íí, do povo Turyuara, durante audiência com o MPF, na tarde de hoje (15) (Foto: Arquivo pessoal)

As denúncias feitas pelo MPF e pelas lideranças indígenas e quilombolas sobre a possível participação da empresa no ataque ao cacique Lúcio Tembé ganham eco quando confrontadas com o histórico de violência praticado pela indústria – casos investigados pela Polícia Federal, pelo MPF e pelo Ministério Público do Estado do Pará (MPPA). 

Amazônia Real acompanha os conflitos na região desde 2018 e no início deste mês reportou a denúncia feita pelo MPPA, assinada pelo promotor de Justiça Emérito da Costa Mendes, em que ele pede a prisão do dono da BBF, Eduardo Schimmelpfeng da Costa Coelho, e do chefe de segurança da empresa, Walter Ferrari, sob as graves acusações de tortura, roubo e espancamento de 11 pessoas da comunidade ribeirinha de Bucaia, no Vale do Acará, vizinha à planta industrial da empresa e seu plantio de dendê. Segundo o MPPA, as vítimas teriam sido espancadas com chutes e golpes de cassetete e obrigadas a inalar spray de pimenta, estando elas amarradas e sido mantidas sob tortura por mais de sete horas. 

No próximo dia 17, a denúncia do MPPA completará um mês e ainda não há manifestação da Justiça sobre o caso. A denúncia indica ainda que a BBF teria acesso ao sistema restrito dos órgãos de segurança pública do Pará, mostrando o poder e a influência no estado e a possibilidade de cooptação de agentes públicos locais. Diante disso, consta na denúncia que “resta claro indícios de tentativa de influência indevida da empresa BBF nos órgãos de segurança do Estado, tendo inclusive acesso a sistemas públicos fechados como Sisp e Infoseg, utilizados para tentar ludibriar as autoridades públicas, bem como, para forjar situações criminosas para imputar a terceiros falsos cometimentos de crimes”. A Amazônia Real procurou a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Pará, mas não obteve nenhuma resposta sobre a acusação. 

A empresa também foi apontada como suspeita, em setembro do ano passado, de ter encomendado as mortes de um grupo de indígenas do povo Turyuara, no quilômetro 14 da rodovia PA-256. Na ocasião, um Gol vermelho com homens armados disparou contra dois veículos ocupados por indígenas. O motorista de um deles, Clebson Barra Portilho (não-indígena), morreu no local. No dia seguinte, a casa cultural do povo Turyuara foi incendiada. 

Na ocasião, a empresa negou qualquer participação nos atentados. A BBF fez um comunicado público, compartilhado maciçamente por  funcionários na rede social, prometendo processar o indígena Paratê Tembé, sob a alegação de que ele estaria “tentando associar de forma caluniosa o nome da BBF a esses fatos trágicos ocorridos nesta manhã, objetivando ações de terrorismo e vandalismo contra a empresa e seus funcionários”.

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