Letramento racial – pílula 1 – 2018

Ilustração Joana Brasileiro Jornalistas Livres

O tema de hoje é um mecanismo imposto pelo racismo para que os negros escolhidos se mantenham no topo.

Antes, cumpre-me avisar  que algumas reflexões se dão pela síntese (estágio posterior às citações de tudo o que lemos, com o objetivo de comprovar que lemos e somos pretensamente eruditas). Outras reflexões avançam um pouco mais e se tornam criação.

E de que mecanismo tratamos? Da escravização que o sucesso midiático impõe. Aquela que obriga a pessoa bem-sucedida a fazer tudo pela audiência, pela exposição na vitrine, pela ampliação do clube de fãs. Aquilo que um jovem negro, diante de uma treta das redes sociais, sabiamente batizou como “luta de lacres”.

A espiral do sucesso devora a todos que o têm como meta de vida. Pensando melhor, a imagem de um redemoinho talvez seja mais adequada, porque a pessoa é consumida, some ali dentro. Perde a noção de onde veio, quem é  e para onde vai. E este é o fim anunciado de qualquer ser humano, não saber quem é,  de onde veio e para onde caminha.

No caso dos negros, em contextos racializados e racistas como o brasileiro, o redemoinho do sucesso impõe as famigeradas especificidades.  Por quê? Porque o sucesso é pensado e projetado para os que estão no topo da pirâmide e para que eles e seus descendentes se mantenham lá. Então, quem vem de baixo e opera por essa lógica de legitimação precisa fazer mais concessões, por isso, mostra mais os fundilhos ao se abaixar.

Há sempre os do andar de baixo que não aprendem a se abaixar, que orgulhosamente devolveram a carteirinha do Bolsa-família, quando não mais precisavam do apoio de 85 reais por mês. Os do andar de cima, por sua vez, se orgulham de contar com auxílio-moradia de 5 mil reais mensais, bolsa para compra de livros para magistrados e auxílio-educação para filhos, incluindo a compra de material escolar, tudo isso incorporado ao salário, como forma de “compensação” pela falta de reajustes satisfatórios.

Entretanto, sempre que um do andar de baixo ousar  usufruir dos direitos de casta, será lembrado imediatamente que não faz parte da casta. Está ali por acidente, apenas para demonstrar que alguns, “à base de muito esforço pessoal”, conseguem “chegar lá”.  Lembremo-nos do caso da ministra negra do desgoverno golpista de Temer,  Luislinda Valois, sobejamente ridicularizada pela imprensa nacional, quando  reivindicou aumento de salário, dados os custos muito elevados de manter-se na elite (roupas, acessórios,  serviços, etc).

A lógica de manutenção do sucesso pode dilacerar a dignidade e pode também corromper. A invasão de privacidade deixa de existir e conforme profetizou o finado José Wilker, passamos a lidar com a evasão de privacidade. Assim, o paparazzi não precisa mais perseguir a celebridade, ela mesma avisa onde está e o que faz: “escuta, vou com meu namorado novo à praia tal, no horário X, com o biquíni da marca Y, para mostrar que estou em boa forma”. Ou, se quisermos exemplos mais sérios e destrutivos, podemos lembrar  dos grampos, seguidos de vazamento das conversas telefônicas entre Lula e Dilma, Lula e seus advogados, Dona Marisa e seus filhos, na semana fatídica da homologação do golpe no Congresso.

Assim, uma treta na internet  pode ser deflagrada de olho no espaço que a celebridade poderá conseguir  num programa televisivo, diário de fofocas e alimentação de celebridades e seus respectivos fã-clubes. O programa, como se sabe,  já deixou a pauta aberta para a celebridade e sua produção, para quando houver algum assunto quente da comunidade negra. Afinal, eles  querem impulsionar as questões dos negros na programação global. Segue o baile.

Mas o preço de dançar essa dança, de jogar esse jogo é muito alto, cada vez mais elevado. As concessões só aumentam, as alianças com os racistas em nome da denúncia do racismo e do adestramento do fã-clube pessoal se alargam, o leque de racistas contactados cresce, porque quando  um padrinho ou madrinha der um pé na bunda da celebridade negra, será preciso ter outros a recorrer. Em fim de contas, a inclusão proporcionada por essa gente, não nos iludamos, é sempre subordinada, funciona à base de compadrio de conveniência.

E o fã-clube, onde entra? É preciso despender horas alimentando-o, conversando com ele ao pé do ouvido, doutrinando-o, porque quando o balão do sucesso  estourar, os padrões de segurança recomendam que haja um lugar macio para cair e não arrebentar o corpo. Um pessoal que te ame de maneira acrítica, que te transforme em herói ou heroína, que te consagre e depois não te destrua, como o sistema racista in-va-ri-a-vel-men-te  fará.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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