Lázaro, o Rambo às avessas do “Covidietnã” brasileiro

Afinal, Lázaro não é o maior bandido, o maior assassino deste país…

Homero Gottardello, jornalista

Terminou sem surpresas a verdadeira caçada que a força-tarefa brancaleônica, que chegou a mobilizar 500 homens, promoveu contra Lázaro Barbosa. O fugitivo driblou um verdadeiro exército durante 20 dias e foi executado após, supostamente, abrir fogo contra policiais. Ao comemorar o “sucesso” da missão, o secretário de Segurança Pública de Goiás, Rodney Miranda, talhou um novo bordão para o bolsonarismo: o da “comunidade de bem” que, agora, está livre do malfeitor.

Foram três semanas quixotescas, em que a fuga de Lázaro rivalizou com a CPI da Covid no noticiário, desviando a atenção do público em relação à privatização da Eletrobras e à aprovação da Projeto de Lei 490/2007 que, basicamente, extingue a Amazônia. O criminoso foi descrito, inicialmente, como um assassino em série, ganhando ares sobrenaturais na medida em que dava um “olé” por dia em um destacamento de Recrutas Zero – os investigadores chegaram a dar entrevistas dizendo que ele tinha força “sobre-humana” e que era “satanista”, como se o diabo existisse num pastelão.

Foi emboscado quando tentava chegar à casa da ex-sogra e sua esposa, seus parentes, conhecidos e até mesmo aqueles que creem apenas tê-lo visto, à distância, terão direito aos “sagrados” 15 minutos de fama no “Fantástico” e no “Domingo Espetacular”. Lázaro Barbosa será lembrado durante pouco tempo, é verdade, como uma espécie de John J. Rambo às avessas. Rambo é o personagem principal de uma série de filmes homônimos, estrelados por Silvester Stallone, que faz o papel de um veterano da Guerra do Vietnã que, ao tentar retornar para casa, passa a ser perseguido por um xerife inescrupuloso. Na telona, o “herói” (um Boina Verde, ex-combatente) consegue escapar da cadeia local e se refugiar na floresta, o que dá início a uma caçada implacável. É a partir aqui que os enredos se assemelham.

Diferentemente de Lázaro, Rambo é um militar treinado para matar, capaz de suportar as mais duras condições de sobrevivência e que vai eliminando, um a um, aqueles que lhe perseguem. Já a versão tupiniquim é menos cinematográfica e, enquanto Rambo se escondia no belíssimo cenário do Fraser Canyon, Lázaro teve que se abrigar em grutas e fazendas do serrado dominante, no Planalto Central. Mesmo despreparado e sem os recursos de que Rambo dispunha, como uma faca multiuso capaz de cortar pedra e dotada de uma bússola, o criminoso nascido na Bahia era capaz de dormir sobre árvores para despistar cães farejadores e caçar animais silvestres para se alimentar – em outras palavras, tinha as habilidades indispensáveis aos sertanejos que não querem morrer de fome durante a seca.

Entre 1961 e 1973, período de 12 anos em que os Estados Unidos esteve mergulhado militarmente na Guerra do Vietnã, mais de 58 mil soldados norte-americanos morreram em combate. É um número de baixas nove vezes menor que os 510 mil brasileiros que morreram no “Covidietnã” brasileiro, em menos de dois anos. No filme norte-americano, os traumas da guerra contra o comunismo determinam tudo, desde a personalidade impenetrável de Rambo ao sadismo do xerife corrupto. Mas, por aqui, onde a produção cinematográfica real ainda está em curso e se aproximando das 600 mil mortes, ninguém consegue traçar uma correlação entre o efeito midiático em torno de Lázaro e a banalização do negócio criminoso de vacina. É incrível as pessoas não enxergarem que Lázaro, na verdade, matou muito menos do que o esquema que declinou as vacinas da Pfizer para beneficiar um contrato superfaturado, com os indianos da Covaxin.

Isso, enquanto dezenas de milhares de pessoas seguem morrendo.

Lázaro deu mais trabalho às forças de segurança do que as universitárias – “comunistas perigosíssimas” – perseguidas e assassinadas, durante a ditadura militar – prender, torturar e matar aquelas 22 moças, com seus estojos, cadernos e livros, foi muito mais fácil. Também deu mais trabalho do que Orlando Sabino, o “Monstro do Triângulo Mineiro” ou “Monstro de Capinópolis”, um andarilho, débil mental, acusado de 12 assassinatos cometidos, na verdade, por agentes da repressão em regiões do Triângulo Mineiro e Goiás – ficou preso por 37 anos e morreu em um manicômio. Lázaro deu tanto trabalho que, agora que está morto, vai “assumir” crimes cometidos por sabe-se lá quem. Afinal, seu quadro já está pintado e será fácil imputar ao defunto latrocínios, estupros e roubos dos quais ele não terá o que dizer. É o mesmo roteiro, há anos, e ninguém enxerga!

Lázaro era santo?

Claro que não!

Era um criminoso cruel, obsessivo, um sujeito tão perigoso que é difícil de aceitar como, preso em 2007 por duplo homicídio, fugiu em apenas dez dias; que preso novamente (agora por roubo e estupro), em 2009, progrediu para o regime semiaberto, em 2014 – apenas cinco anos depois. Que voltou a ser preso outras duas vezes, fugindo novamente em ambas as ocasiões. Era, portanto, uma pessoa que estava sob custódia da Justiça há 14 anos – só a condenação por duplo homicídio chega a três décadas de reclusão – mas que, ao contrário de um ladrão de galinhas de Rochedo de Minas (MG), que teve que recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF), em 2014, para não ser condenado a quatro anos de prisão, vivia livre, leve e solto. Pior, Lázaro sentia-se tão desprendido que continuava a delinquir.

Achar que sua morte colocará fim à brutalidade no campo, à violência nas periferias, é uma ingenuidade. As pessoas precisam, urgentemente, acordar, notar que o mesmo sistema legal que deu a Lázaro condições de fugir ou que, dentro do devido processo, chegou a beneficiá-lo com o regime semiaberto, autorizando sua saída do presídio, está operando da mesmíssima forma neste instante – este episódio midiático não mudou nada nas instâncias policial, judicial e penitenciária brasileiras. Pode parecer exagero, mas, no frigir dos ovos, as mortes Lázaro e do ex-capitão Adriano da Nóbrega (que revelou uma precisão cirúrgica e altamente suspeita da polícia baiana) não estão nem condenando e nem salvando a “comunidade de bem”. Estão, apenas e tão somente, encobrindo crimes muito maiores, grupos organizados de pistolagem e tráfico internacional, privatizações, desregulamentações e desapropriações votadas no Congresso Nacional que têm um impacto socioeconômico infinitamente mais relevante e que, indiretamente, atentam contra a vida de uma enorme parcela da população.

No fim do filme, os créditos escondem o óbvio: que Lázaro não é o maior bandido, o maior assassino deste país…

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