João Doria pode apagar o grafite, mas não pode apagar Basquiat

Grafite (já apagado) de OsGêmeos criticando a ação do governo Dória.

Nas últimas semanas, o prefeito de São Paulo, João Doria, começou a cumprir uma de suas promessas de campanha mais polêmicas: o programa batizado Cidade Linda, que visa apagar murais de grafite e/ou pichações não considerados “aceitáveis” pela administração. A intervenção mais notável do programa do prefeito até agora foi na Avenida 23 de Maio, onde se localizava o maior mural de grafite da América Latina, contendo trabalho de mais de 200 artistas, dos mais reconhecidos (OsGêmeos, Nina Pandolfo) aos anônimos.

O prefeito manteve apenas oito painéis de grafite, argumentando que os outros estavam “envelhecidos”, ou “infelizmente mutilados por pichadores”. Tinta cinza cobriu grande parte dos painéis já no primeiro dia, e ainda que as paredes tenham amanhecido com mensagens críticas à ação do governo, o Cidade Linda não dá sinais de parada. “Se eles pensam que com ataques, com pichações, vão inibir a ação do prefeito, ao contrário, a perseverança só aumenta para defender a cidade”, disse Doria em entrevista.

O contrário da declaração do prefeito, no entanto, também pode ser dito. Se João Doria pensa que cobrir murais de grafite vai inibir artistas de rua a continuarem passando suas mensagens, é melhor ele comprar mais tinta. É definitivamente deprimente ver trabalhos belos sendo encobertos por uma cor da qual a cidade de São Paulo não precisa de mais, no entanto é também óbvio que encobrir a arte não encobre o artista. Não o verdadeiro artista, com alma de artista, pelo menos.

Jeffrey Wright em Basquiat (1996)

A criança radiante

Jean-Michel Basquiat nasceu em 22 de dezembro de 1960, de uma mãe porto-riquenha e um pai haitiano. Quando o garoto tinha 13 anos, a mãe foi internada em um sanatório, onde passou o restante da vida, e os conflitos de Basquiat com o pai implodiram até ele fugir de casa, aos 15 anos, desistir da escola tradicional e passar a viver de favor na casa de amigos (e, eventualmente, nas ruas de Nova York). A história de como a vida de Basquiat mudou a partir de pichações e, mais tarde, grafites e pinturas, está documentada no filme que leva seu nome, de 1996, com Jeffrey Wright entregando uma atuação arrasadora no papel do artista.

A ascensão de Basquiat aconteceu durante o final dos anos 70, quando sua assinatura de pichações (“SAMO”) ficou conhecida no submundo da arte, e o início dos anos 80, quando ele trabalhou com artistas do naipe de Andy Warhol e Julian Schnabel, que mais tarde dirigiria o filme sobre a vida do amigo. Será que o nosso mundo, 30 anos depois, é mesmo um que entende menos a arte de Basquiat do que aquele no qual ele viveu, na Nova York pré-AIDS?

O verdadeiro Jean-Michel Basquiat (à direita) ao lado de Andy Warhol

Tal e qual seu ídolo e mentor Warhol, Basquiat apropriava estilos e “roubava” palavras e gestos de outros artistas para dizer o que só ele podia. O filme sobre sua vida, com David Bowie na pele de um Warhol deliciosamente divertido, é um testamento ao poder dessa arte que “suga” a cultura popular e “vomita” de volta uma mistura única e excitante, mesmo que você não a entenda completamente. Basquiat pintava em portas de geladeira, pneus, peças de decoração, janelas e, é claro, muros de Nova York. Ele dava vida à sua arte ao coloca-la dentro do ambiente, e não ao prendê-la em uma galeria, como a fama o fez fazer.

Basquiat faleceu em 1988, aos 27 anos, após ficar muito abalado com a morte de Warhol e se afundar no vício em drogas, mas sua arte inspirou tanta coisa depois dele que fica difícil contar. Vamos nos concentrar no Brasil, no entanto, onde o final dos anos 80, com a chegada da cultura hip hop e a ascensão de ícones da música urbana, inspirou uma dupla de artistas, conhecida como OsGêmeos, a desenvolver uma estética que já começava a nascer nas ruas em um estilo próprio de grafite brasileiro.

Ao lado de outros nomes da cena paulistana e de outras partes do Brasil, eles aos poucos ganharam reconhecimento nacional e internacional como artistas que legitimamente criaram um movimento e um estilo próprio, que se ramificou e modificou a partir deles. Tudo está bem registrado no documentário Cidade Cinza (2013), que mostra que mesmo antes de João Doria a cultura do grafite e da pichação já estava sendo combatida em São Paulo.

Dupla de artistas plásticos brasileiros conhecidos como OsGêmeos

Limpeza de quê?

“Você nunca vai conseguir explicar para alguém que usa o dom de Deus para escravizar o fato de que você usou o dom de Deus para ser livre”, comenta o ensaísta Rene Ricard (Michael Wincott) em certo momento do filme sobre Basquiat. Tal e qual a pessoa que o inspirou, o filme de Julian Schnabel parece advogar por uma arte que invada agressivamente o cotidiano e encontre sua forma de se expressar longe, muito longe, das convenções e preconcepções do elitismo de determinados agentes.

Talvez por isso seja tão claro que a iniciativa de João Doria ao apagar grafites e pichações dos muros de São Paulo é muito mais do que uma “limpeza” visual – é uma limpeza étnica, social e artística que não deve ser admitida. Diz o prefeito que a ideia é criar intervenções reguladas para grafiteiros, em pontos pré-estabelecidos da cidade e com artistas aprovados pela administração. Nada se diz sobre o critério da seleção desses artistas, ou se eles terão a liberdade para escolher (ou sequer sugerir) os lugares em que suas intervenções fariam mais sentido – afinal, parte fundamental do grafite e seu poder é sua localização geográfica.

O Cidade Linda, portanto, não quer apagar o grafite, e sim a história dos grafiteiros – em pleno século XXI, em tempos de arte contemporânea, essas duas coisas são quase inseparáveis. Se há algo que se aprende, no entanto, quando se olha para a história da arte, é que a ela não sabe como andar para trás; especialmente uma arte urgente, cuja rebeldia, mesmo em espaço controlado de exibições e galerias, é inegável.

As inspirações coloridas e ácidas dos artistas da 23 de maio e do resto de São Paulo seguirão brilhando para muito além da tinta cinza aplicada pelo prefeito, porque são a continuidade de uma linha do tempo que não sabe se dobrar e voltar para trás. É fácil apagar o grafite; difícil, mesmo 29 anos depois de sua morte, será apagar Jean-Michel Basquiat.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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