João Doria e a vassoura dos garis

Jânio Quadros, higienista como Doria, também com uma vassoura na mão.

O telejornal matinal da TV Globo de São Paulo esteve hoje, 2 de Janeiro de 2017, ao vivo na Praça 14 Bis, Av. 9 de Julho, na cerimônia de lançamento do programa de limpeza urbana intitulado “Cidade Linda”. Como os comentaristas de portal – e os próprios portais – já alardearam amplamente, o recente prefeito João Doria se vestiu como gari e posou para fotos no local com uma vassoura. Na Globo, a quem Doria, ainda trajado, deu uma entrevista, o repórter e o âncora se esforçaram para transmitir o tom de cobrança com que trataram toda a gestão Haddad, com a diferença de raramente terem lhe dado a oportunidade de responder ao vivo. As perguntas focaram principalmente na perspectiva de continuidade do esforço de limpeza para além do lançamento e, por incrível que pareça, no tratamento que seria dado aos moradores de rua que fazem uso da praça, ao que Doria respondeu com prontidão fazendo todas as garantias. Uma repórter estava também ao vivo acompanhando a remoção de pichações na Ponte Estaiada, um colosso arquitetônico de utilidade urbana questionável, já que não permite o trânsito de pedestres nem de ônibus, mas que faz pano de fundo aos estúdios da própria Globo na Marginal Pinheiros.

Assim, vale lembrar de dois momentos em que o ex-prefeito Haddad tentou de maneira no mínimo parecida publicizar suas ações: quando andou de bicicleta na recém-inaugurada ciclovia da Avenida Paulista e quando pegou um ônibus da sua casa para a prefeitura, aproveitando as faixas exclusivas. O jornalismo da TV Globo foi crítico aos dois projetos, além da redução de velocidade máxima nas marginais, posição que fez questão de transmitir nos telejornais das 6 da manhã, do meio dia e das 18 horas, sem transmissões ao vivo – a não ser dos engarrafamentos – sem perguntas que dessem a Haddad a chance, que Doria teve já no segundo dia de mandato, de se comunicar com a população.

Isso não significa porém que exista nos quadros da Globo uma posição rígida em favor da limpeza urbana e contrária ao ciclismo ou ao transporte público. Muito menos é de se imaginar na emissora uma preocupação genuína com a população em situação de rua, como tentou se fazer crer pelas perguntas feitas a Doria. A questão objetiva era o fomento do ódio ao PT, qualquer que fosse a instância, e é a aliança inabalável do oligopólio da grande imprensa com o PSDB, justificada não só pelos grandes orçamentos publicitários, como também pelo projeto de gestão pública voltada para o privatismo, entreguismo para o capital privado, precarização dos direitos dos trabalhadores – inclusive dos garis.

Enquanto isso, a previsível batalha das redes sociais se detém no simbolismo do fato: critica-se ou entaltece-se a roupa de gari, a pegada da vassoura, o fato de o local ter sido limpo de madrugada antes da chegada do prefeito. Para um lado ou para o outro, há de se reconhecer que o programa da prefeitura está amplamente publicizado e que objetivamente não há grandes problemas na bem-sucedida ação de marketing de João Doria, além do seu autoevidente ridículo. A própria Folha de São Paulo fornece material para o humor ao publicar detalhes da cerimônia em sua própria página e no seu braço direito, o UOL.

Ganham com isso, mais uma vez, o oligopólio da grande imprensa e o projeto direitista. Aqui, como na trama do golpe, a mídia coloca-se superposta ao espaço público como lugar de realização da política, operando símbolos num espaço virtual ao invés de dados da realidade concreta, alienando os fatos e a crítica em função de uma disputa midiática falaciosa.

Para além da memética, portanto, é preciso localizar o fato no projeto de cidade encabeçado por João Doria. Um dos objetivos da operação Cidade Linda é o apagamento do pixo de diversos pontos da cidade. Some-se a isto a remoção dos moradores de rua, que necessita de constante fiscalização com vistas aos direitos humanos. Fica evidente que o propósito do programa não é higiênico, mas higienista. A limpeza é estética: visa a eliminação do rastro e da expressão do pobre dos caminhos da cidade. O aumento dos custos do bilhete único mensal e da integração entre ônibus e metrô, bem como o projeto de transferir o evento Virada Cultural para fora do centro da cidade vão na mesma direção: restringir o acesso ao espaço público para as populações periféricas. Moradores de rua, catadores, pixadores, usuários de droga: são eles a quem essa gestão denomina lixo.

A luta que cabe é, muito além da crítica às fantasias que vestiu e virá a vestir o novo prefeito de São Paulo, pelo espaço público, pelo direito de existir, ir e vir e se expressar, pela democratização da cidade.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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