RODRIGO PEREZ OLIVEIRA, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia
Datafolha, BTG Pactual/FSB, IPESP, Quaest.
Todas as pesquisas feitas por institutos com alguma credibilidade mostram que mesmo em seu pior momento, Jair Bolsonaro jamais teve menos de 20% da sociedade brasileira ao seu lado. As últimas pesquisas identificam, ainda, tendência de recuperação na popularidade do presidente, que hoje se aproxima dos 30%.
Condução desastrosa da pandemia, boicote às medidas sanitárias, escândalo de corrupção envolvendo compra de vacinas, escândalo de corrupção no MEC, desemprego e inflação nas alturas. Caos econômico.
Por muito menos, presidentes já foram derrubados, como Collor e Dilma.
Por muito menos, presidentes foram inviabilizados eleitoralmente, como Temer.
Por que com Bolsonaro está sendo diferente? O que explica a sobrevivência do capital político do bolsonarismo, mesmo depois de tudo que aconteceu neste país nos últimos três anos?
É isso que tento explicar neste ensaio. Por partes.
1°) O bolsonarismo pertence à história recente, sendo resultado da crise democrática iniciada em 2013. É Ideologia política anti-sistêmica que nega o regime democrático fundado na Constituinte de 1988. Negação autoritária, pela extrema-direita, mas que se tornou popular no momento em que se difundiu a ideia de que a “Nova República” estava estruturalmente corrompida.
É impossível negar que Jair Bolsonaro teve faro político para capitalizar essa percepção coletiva, explorando a ideia de “corrupção” em duas perspectivas diferentes e complementares: como sinônimo de roubo de grandes somas de dinheiro público pelos políticos profissionais e como ataque aos “valores da família tradicional brasileira”. Os governos petistas, identificados como a causa matriz dessa corrupção estrutural, se tornaram antagonista perfeito.
Ao mesmo tempo em que desviavam grandes somas de dinheiro público, os governos petistas corrompiam os valores tradicionais, com a “ideologia de gênero”, por exemplo. Essa é a premissa que funda o bolsonarismo.
Sem essas duas dimensões da ideia de “corrupção” o bolsonarismo não conseguiria se consolidar como ideologia anti-sistêmica. Isso se tornou trunfo tão importante a ponto de a corrupção bolsonarista não ser socialmente lida como como corrupção, ao menos pela base de apoio do presidente.
Esqueminhas envolvendo rachadinha, lavagem de dinheiro em imóveis, propina pra pastor não são contemplados pela ideia de “corrupção” que se tornou hegmônica no debate público brasileiro nos últimos anos.
Já que o sistema estaria estruturalmente corrompido, o bolsonarismo afirma que apenas o líder disruptivo (o próprio Jair Bolsonaro) é capaz de representar fielmente os desejos populares e os interesses dos “cidadãos de bem”. Todas as outras instituições da República, como as casas legislativas e o Poder Judiciário, também estariam corrompidas.
Assim, Jair Bolsonaro conseguiu inventar a figura do “presidente out-sider”. Ou seja, é chefe de Estado, está no topo do establishment, mas ainda se apresenta como alguém que não é responsável pelos problemas do país. Todas as tragédias seriam culpa de governadores, juízes, deputados, senadores, ou de qualquer outro que possa ser pintado como caricatura do “sistema”.
A tese faz sentido para cerca de 30% da população. Não é pouca gente.
2°) Engana-se, por outro lado, quem acha que o bolsonarismo sobrevive apenas de agitação ideológica. Desde o início do mandato, o bolsonarismo mostrou sua dimensão pragmática, manifestada pela cooptação de instituições estratégicas.
Para a PGR, por exemplo, foi nomeado Augusto Auras, que age como advogado do governo. Aras é leal na defesa de Jair Bolsonaro. O que garante essa lealdade? Ainda a promessa de nomeação para o STF, em vaga que somente surgiria em eventual segundo mandato? Um dossiê com informações pessoais comprometedoras? Adesão ideológica? Tudo isso junto?
De todo modo, não deixa ser impressionante como o bolsonarismo consegue fidelizar seus indicados para os postos no Poder Judiciário, como acontece também com Kássio Nunes e André Mendonça no STF. Nesse aspecto, foi muito mais eficiente que o PT.
A dimensão pragmática do bolsonarismo ficou ainda mais evidente ao longo de 2021.
Em fevereiro de 2021, Bolsonaro interferiu diretamente na eleição da mesa diretora da Câmara dos Deputados. A escolha não foi por um aliado ideológico direto, mas sim por um cacique do centrão: Arthur Lira (PP/AL).
Bolsonaro apostou alto e venceu Rodrigo Maia, aquele que até então era seu principal adversário. Em setembro, após a derrota da conspiração golpista, o governo passou a investir ainda mais na fidelização do tal “centrão”. Orçamento secreto, milhões em emendas parlamentares. Quase 30 anos no parlamento ensinaram a Bolsonaro como lidar com o Congresso Nacional.
Jair Bolsonaro passou, então, a operar em duas frentes distintas: à luz do dia, o agitador ideológico, no cercadinho, nas lives de quinta-feira e nas motociatas. Nas sombras do palácio, o agente político pragmático que usa dinheiro público para comprar aliados.
3°) A cooptação dos militares, que desde a formação do Comissão Nacional da Verdade, instituída em novembro de 2011, alimentavam certo ressentimento pelos governos petistas. A fidelidade dos militares foi comprada por um regime previdenciário privilegiado e por salários maiores que a média do serviço público. Como o horizonte golpista é parte essencial do bolsonarismo, o apoio das corporações armadas (ou pelo menos de parte delas) é fundamental.
4°) Não é novidade para ninguém que as igrejas evangélicas, sobretudo as neo-pentecostais, são as organizações políticas que mais se fortaleceram no Brasil nos últimos 20 anos. O bolsonarismo comprou as lideranças do segmento, e não apenas os pastores midiáticos, como Silas Malafaia e Edir Macedo. O recente escândalo no Ministério da Educação traduz exatamente esse modus operandi. Pastores de igreja menores, capilarizadas em municípios pequenos, recebiam propina para intermediar a relação entre prefeituras e o MEC. Em troca trabalham pela adesão ideológica de suas comunidades ao governo. Esses pastores de “baixo clero” são ainda mais estratégicos que os pastores magnatas.
Os estudiosos especializados ainda investirão muita energia pra tentar entender como um projeto de destruição nacional conseguiu ser endossado por parcela tão relevante da sociedade. É importante resistir à tentação de simplificar o problema, tratando como ignorantes aqueles que ainda apoiam o governo. Ou mesmo achando que o “auxílio Brasil” explica tudo.
Acredito mesmo que estamos diante de um dos fenômenos mais impressionantes da história recente brasileira e que nos convida a desenvolver outras modalidades de explicação do fenômeno político.
A resposta, na minha avaliação, passa pela combinação entre agitação ideológica e pragmatismo político. A estratégia está sendo bem sucedida.
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