Irmã de haitiano linchado em SC chega hoje ao Brasil para buscar filho

Tingue foi linchado por uma horda de racistas. Foto: arquivo pessoal

Neste domingo faz uma semana que o corpo do imigrante haitiano Kerby Tingue está no Instituto Médico Legal, para onde foi levado pela Polícia Rodoviária Federal e registrado enganosamente como  vítima de acidente de trânsito. O estudante e trabalhador foi assassinado na madrugada de segunda, após ser espancado e empurrado para a BR 101 por uma horda de racistas na saída da boate Forma Eventos, no município de São José, vizinho de Florianópolis. Segundo testemunho de um amigo haitiano da vítima, um grupo de cinco homens o viu urinando do lado de fora da casa e começou a esmurrá-lo e a chutá-lo. Logo muitas outras pessoas enfurecidas se juntaram ao linchamento de Kerby, que terminou sua vida no Brasil atropelado por um caminhão. A testemunha conta que sofreu várias ameaças de morte no local e os grupos de apoio estudam pedir proteção federal. As redes de solidariedade se mobilizam para apoiar a irmã, que chega hoje do Haiti para buscar o filho que estava sob a guarda do jovem no Brasil. Marie vai reconhecer o corpo no IML e pretende levar o corpo para ser enterrado no Haiti, mas a família não tem recursos para o traslado.

Imigrante haitiano foi espancado e morto por frequentadores da boate que o viram urinar do lado de fora. Foto: Divulgação

Parlamentares e entidades apoiadoras de imigrantes e refugiados em Florianópolis (SC) realizam uma reunião de emergência na segunda-feira (10), às 15 horas, na Casa da Memória, para oferecer apoio à família da vítima e exigir da polícia civil a investigação e punição dos assassinos do imigrante haitiano Kerby Tingue, 32 anos. Vão também tratar com a irmã da vitima, Marie Tingue, que chega neste domingo do Haiti, sobre o traslado do corpo para o país de origem, conforme a médica Thaís Lippel, do Grupo de Trabalho do Imigrante da Assembleia Legislativa de Santa Catarina . Marie Tingue vem a Florianópolis para buscar seu filho, de 11 anos, que estava sob os cuidados do irmão assassinado. A criança está provisoriamente sob a guarda do Conselho Tutelar da Criança e do Adolescente.

A Diretoria Estadual de Investigações Criminais de Santa Catarina confirmou na sexta-feira ao anoitecer, através das filmagens da rodovia, que se tratou mesmo de um homicídio e não de um atropelamento acidental. Um inquérito policial aberto na sexta-feira (7/6) tem 30 dias para chegar a uma solução. Mas isso só ocorreu após a Polícia Civil ser informada pelos Jornalistas Livres sobre as denúncias do assassinato do imigrante que circulava nos grupos das redes de apoio.

Delegado Galeno promete: “Identificar os autores e a motivação do crime agora é questão de tempo”

Mais do que refutar a versão do acidente, as imagens mostram claramente que Kerby foi vítima de um linchamento assistido por mais de uma dezena de pessoas.  Neste final de semana, o delegado responsável pelo inquérito, Manoel Galeno, está realizando diligências nos arredores da boate para encontrar testemunhas entre os frequentadores e vizinhos. A polícia civil de São José já havia rondado a área, sem sucesso, na sexta-feira à noite. “O principal, que eram as provas do homicídio, já foi feito. Agora é só questão de tempo para chegar aos culpados”, promete Galeno.

O Boletim de Ocorrência registrado pela PRF no dia do crime culpa Kerby pela própria sorte ao agir “em desobediência à lei do trânsito e avançar a pista de rolamento”. Esse documento mostra também que no registro policial houve sonegação de informações sobre o espancamento e o empurrão criminoso para a rodovia pelas pessoas que assistiram à violência. O próprio caminhoneiro, que esperou a polícia chegar e tratou de se defender de qualquer culpa, pode ter ignorado a movimentação dos agressores ou ter sido enganado pelo testemunho da multidão aglomerada em volta. As entidades também avaliam a cumplicidade ou negligência da própria PRF ao prestar ocorrência no local e inocentar os envolvidos.

FAMÍLIA NÃO TEM RECURSOS PARA O TRASLADO

Marie Tingue chegou a Florianópolis às 9 horas de hoje e em seguida se reuniu com a comunidade haitiana para tomar pé da situação. Amanhã ela se reúne com entidades solidárias e vai ao IML identificar o corpo

 

 

 

Além de resgatar o filho que estava sob a guarda do irmão assassinado, Marie Tingue chegou a Florianópolis hoje às 9 horas para tratar do traslado do corpo em nome da família.  Em seguida ela se reuniu com a comunidade haitiana. A operação de traslado tende a ser um grave problema porque a família não tem condições financeiras de arcar com os custos, explica Jeruse Romão, socióloga e integrante do gabinete do vereador Lino Peres, que está convocando a reunião com as entidades solidárias para agilizar as providências junto aos órgãos responsáveis.  “A família está muito chocada, muito triste e muito abalada com a hipótese de não poder se despedir do jovem na sua terra natal, onde ele tem um filho”, relata a socióloga negra, que na quinta-feira recebeu a denúncia de uma testemunha e a fez circular nas redes de apoio. Segundo ela, na segunda-feira, Marie vai ao IML reconhecer o corpo e buscar o laudo do óbito. “E daí este corpo abatido talvez nos conte mais detalhes sobre o horror vivido por esse jovem”.

Na sexta-feira, assim que a reportagem dos Jornalistas Livres recebeu a denúncia da professora de Língua Portuguesa para estrangeiros, Elsa Nuñez, integrante do Grupo de Apoio aos Imigrantes e Refugiados de Florianópolis, procurou a polícia civil de Biguaçu e São José para elucidar o assassinato. Graças às informações das redes solidárias repassadas pela reportagem, a polícia confirmou que o cadáver despejado há cinco dias no IML como se fosse um indigente, sem qualquer comunicação oficial à família da vítima, aos amigos ou às entidades apoiadoras, era o do imigrante negro assassinado pelos frequentadores da casa de shows Forma Eventos.  A princípio, a Polícia Civil acreditava que tudo não passava de boato ou de uma fake news recorrente há mais de um ano.

TESTEMUNHA RECEBEU VÁRIAS AMEAÇAS DE MORTE

Amigo de Kerby afirma que foi intimidado por agressores para não delatar o espancamento no próprio local do crime. Entidades avaliam possibilidade de pedir segurança da Polícia Federal para proteção da testemunha.

Haitiano estava feliz no Brasil onde trabalhava e estudava inglês há dois anos. (Foto: Arquivo pessoal)

O haitiano que acompanhava Kerby na noite de domingo, testemunhou que ele foi espancado primeiramente por um grupo de cinco homens e na sequência várias outras pessoas se juntaram ao linchamento, incluindo mulheres. Conta que Kerby apanhou muito e também ele, inclusive, ficou bastante machucado. Quando viu que a situação fugia de controle e que não daria conta de defender o amigo, saiu para buscar socorro. Quando voltou encontrou o amigo já estendido e morto. Segundo as pessoas no local relataram para ele, o conterrâneo morreu ao tentar fugir do espancamento correndo para a rodovia. E foi essa a versão produzida pelos algozes e cúmplices do assassinato difundida entre os grupos de apoio no Brasil, os amigos e a família no Haiti.

Ao constatar nas imagens liberadas pelo DEIC, na sexta-feira, que Kerby foi empurrado para as rodas do caminhão pela multidão ensandecida, a testemunha entrou em choque emocional e precisou de ajuda médica. Ele está recebendo ajuda psicológica desde sábado.  “Conhecer a verdade sobre a forma cruel como o jovem foi assassinado abateu muito a família”, relata Jeruse. No próprio local do crime, o amigo afirma que recebeu várias ameaças de morte dos agressores para não delatar o espancamento. As entidades avaliam inclusive a possibilidade de pedir segurança da Polícia Federal para a proteção da testemunha.

 

HAITIANOS E AFRICANOS DESCOBREM DOR DO RACISMO NO BRASIL

Imigrante ganês usou metáfora física para explicar a dor moral que o racismo provoca em estrangeiro negro que se arrisca a tentar a vida no Brasil: “é como extrair um dente sem anestesia”. Historiadora considera fato a emergência de uma onda neonazista no Sul do Brasil. 

 

Pai de um menino que está no Haiti, Kerby estudava inglês no Curso de Extensão do Instituto Estadual de Educação e trabalhava como mecânico na empresa Autoviação Catarinense, em Florianópolis, desde o dia 31 de janeiro de 2018. Dhiego Nazario, que estava empregado com Kerby há dois anos na mesma empresa, considerava-o um “super profissional” e surpreendeu-se ao saber  do assassinato através do site dos JL. Segundo Dhiego, na empresa todos os colegas achavam que o haitiano havia sofrido um acidente. “Jamais cogitamos essa hipótese”. Ex-estudante de língua inglesa da UFSC e do IFSC São José, jogava basquete na Liga Desportiva NBA antes de vir ao Brasil e falava cinco línguas, de acordo com o seu perfil nas redes sociais.

Espancado por frequentadores da boate, Kerby é empurrado para marginal da BR sob tráfego intenso. Foto: divulgação

Em solidariedade ao haitiano, o vice-presidente da Associação de Senegaleses em Florianópolis, Cheik Bamba Diop, afirmou que o povo africano seria feliz no Brasil se não fosse a discriminação. “Na verdade, a justiça não ajuda, não dá valor aos imigrantes, nem a Polícia Federal. Muitos imigrantes que moram aqui são obrigados a ir para Itajaí renovar o protocolo de entrada.” Para Cheik, a maioria dos caribenhos e africanos não têm maldade e frequentam lugares perigosos para os negros por falta de esclarecimento.

A historiadora Marlene de Fáveri, autora de livros sobre o nazismo em Santa Catarina, considera fato a emergência de uma onda neonazista no Sul do Brasil. Os imigrantes africanos e caribenhos descobrem o sentido do racismo no Brasil. Em depoimento a Bruna Kadletz, coordenadora dos Círculos de Hospitalidade na grande Florianópolis, um imigrante ganês usou uma metáfora física para explicar a dor moral que o racismo provoca num estrangeiro negro que se arrisca a tentar a vida no Brasil: “é como extrair um dente sem anestesia”.

 

COMENTÁRIOS

4 respostas

  1. Hola qué triste eu sou brasileira vivo en España ?? e penso que o racismo é una ignorância porque são todos iguais se espancarven Europa un sul americano un latino americano un asiático a dor da família é a msm todos quer una vida melhor triste é vergonhoso ???

  2. Ah, mas que falácia, no Brasil não existe racismo, não é?

  3. No Sul do Brasil só tem gente ruim.
    Lembro que quando fui a Balneário Camboriu, as pessoas olhando para mim e meus familiares com cara de nojo e reprovação por sermos negros.
    Tentavamos ser o mais discreto possível, mas eles não gostam de negros. São racistas.
    E se verem um negro em pé de igualdade com eles, ficam cheios de ódio.
    Para eles nós não temos direito ao crescimento financeiro.
    Eu odeio esse lugar.
    Nunca mais voltarei a pisar meus pés lá.

  4. Muito triste mesmo por que eles Amam o Brasil mais que nois brasileiros isso nunca vai acabar infelizmente ??

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