ARTIGO
Eduardo Campos, jornalista e advogado mineiro, visitou o Irã em 2018 e mantém
contatos com amigos que fez no país
A mídia ocidental hegemônica sempre comprou a narrativa contemporânea do
Império, segundo a qual o Irã é um país satânico. Não por acaso, George
Bush, então presidente dos Estados Unidos, incluiu o Irã no tripé que
caracterizou, em 2002, como “Eixo do Mal”, que contava ainda com Iraque e
Coreia do Norte. Da “ameaça” do Iraque, o Império se livrou já no ano
seguinte, invadindo o país e derrubando seu governo. A Coréia, continua
levando em banho-maria, tendo Trump participado, nos últimos anos, de um
jogo cênico bilateral, simulando falsos acordos de paz.
Já o Irã, este não apenas não se dobrou, nem sequer esboçou fazê-lo, muito
embora tenha se disposto a celebrar um acordo de não-proliferação de armas
nucleares, com as maiores potências do mundo, reduzindo seu estoque de
urânio enriquecido e adotando outras medidas afins. O acordo permitiu acabar
com o embargo comercial imposto pelos Estados Unidos e seus aliados ao
país dos aiatolás, que enfrenta, desde então, sérios problemas econômicos.
Foi, contudo, rompido unilateralmente por Trump, em 2018, a pretexto de que
não estaria conseguindo cumprir seu objetivo de conter a ameaça nuclear. O
Irã não se curvou à chantagem estadunidense, permitindo-se, ao contrário,
relaxar com cláusulas do pacto, diante da retomada das sanções pelo Império.
O novo embargo, contudo, voltou a provocar grande impacto na economia do
país, que ainda não havia se recuperado da crise e viu se agravarem as
restrições à venda de seu petróleo e ao seu sistema bancário.
O objetivo de Trump, na verdade, mais que o histórico interesse dos Estados
Unidos no petróleo do Oriente Médio, foi o de conter o avanço da influência
iraniana na região, já bastante acentuada no Iraque, na Síria, no Líbano e no
Iêmen, tendo como contraponto Israel e a Arábia Saudita.
O assassinato do general Soleimani, no último dia 3, se enquadra nesse
contexto. Soleimani foi o principal articulador da expansão da influência
iraniana no Oriente Médio nas últimas décadas, ele que, em 1998, assumiu a
direção da Força Quds, divisão da Guarda Revolucionária Iraniana responsável
por ações militares extraterritoriais. Não por acaso era considerado o segundo
homem mais forte do país, abaixo apenas do Aiatolá Kamenei, líder supremo, e
acima mesmo do presidente Rohani e do líder do Parlamento.
As expectativas, agora, se voltam para a reação do Irã e de seus aliados na
região, em face do atentado terrorista perpetrado pelos Estados Unidos no
território do Iraque, que vitimou também importantes líderes iraquianos.
A primeira resposta importante foi a decisão do Parlamento iraquiano, tomada
neste domingo, 5, de pedir ao primeiro-ministro do país a expulsão das tropas
estadunidenses e aliadas de seu território. Como a proposta partiu do próprio
primeiro-ministro, não há dúvida de que será implementada, tornando-se a
primeira vitória iraniana na contraofensiva que se anuncia.
Ao lado dela, o Irã já anunciou, também neste domingo, que não mais se subordinará às restrições
para enriquecimento do urânio, muito embora esteja disposto a continuar sendo
monitorado pela Agência Internacional de Energia Atômica, vinculada à ONU.
O país condiciona a revisão da decisão à suspensão das sanções comerciais
lideradas pelos Estados Unidos.
O regime iraniano, na verdade, está com um abacaxi na mão, e saber
descascá-lo é essencial para que o país e seus aliados não sofram revezes
ainda maiores. Não pode deixar de dar uma resposta contundente ao
assassinato de seu líder, sob pena de se desmoralizar, não apenas na região,
mas, sobretudo, diante de seu próprio povo. Corre o risco de, ao fazê-lo, sofrer
novos ataques, tendo Trump já ameaçado bombardear o país, em caso de
represália a alvos americanos.
Trump, por sua vez, também não está em situação confortável, já que disputa a
reeleição no fim deste ano e seu discurso populista de direita sempre
incorporou o combate às guerras, focando nos interesses internos do país,
como querem os seus concidadãos. O assassinato de Soleimani foi, na
verdade, uma jogada de grande risco. Se não houver reação de impacto, sai
fortalecido ainda mais para o pleito, somando-se sua demonstração de força à
boa situação econômica vivida pelo país. Uma reação dura, contudo, tende a
provocar nova ofensiva de sua parte, fugindo ao controle por ele planejado e
com importante potencial de desgaste junto ao seu eleitorado.
Embora não se possa prever, com o mínimo de segurança, o que acontecerá
nos próximos dias, não é razoável supor que o Irã se absterá de novas
medidas, em contraponto ao ataque sofrido. As possibilidades aventadas são
múltiplas, desde a mais arriscada de todas, de atingir alvos estadunidenses na
região, até a guerra cibernética, área em que o país vem se especializando e já
possui força considerável, passando por ações no Estreito de Ormuz, por onde
transitam de 30% a 40% do tráfego de petróleo do mundo, e ataques a aliados
dos Estados Unidos, particularmente Israel.
Um dado nesse jogo de xadrez não pode ser desconsiderado: o apoio do povo
iraniano ao enfrentamento do país aos interesses hegemônicos
estadunidenses.
Os iranianos têm um grande orgulho da história de seu país, o que impulsiona
seu espírito de defesa da soberania nacional. Este sentimento não se confunde
com apoio ao regime teocrático que se impôs ao país com a Revolução
Islâmica de 1979. Domina tanto os que sustentam o regime, quanto a
crescente parcela que o rejeita e que aspira por liberdade e democracia.
O povo iraniano quer paz, mas sabe que ela não será alcançada com a
capitulação dos interesses nacionais, diante dos constantes ataques dos
Estados Unidos contra o país e seus aliados na região. Defensores e
opositores do regime se unem no combate à política hegemonista do Império.
Além de seu espírito nacionalista, todos sofrem, no dia a dia, as consequências
das sanções econômicas impostas ao país. A inflação e o desemprego estão
fora de controle. As filas nas casas de câmbio não dão trégua, evidenciando o
enfraquecimento do rial, moeda nacional, e a busca de um mínimo de
segurança no dólar e no euro.
Praticamente não se vê mendicância no Irã, mas as condições de vida da
população se deterioram de maneira progressiva. O regime dos aiatolás
manteve a política de concentração de riqueza da monarquia que substituiu,
liderada pelo Xá Reza Pahlev, ainda que o dinheiro tenha mudado de mãos. As
desigualdades, agravadas pela crise, potencializam o descontentamento com a
teocracia vigente.
A sociedade iraniana se encontra em estado de ebulição. Parte expressiva da
população percebe claramente que o regime vem utilizando o manto religioso
como instrumento de manipulação das consciências e de sua própria
manutenção. As mulheres já se rebelam contra a opressão a que são
submetidas. Já se veem, com certa frequência, manifestações públicas de
contestação ao uso do hijab, o véu obrigatório que cobre suas faces. Os jovens
querem liberdade. O álcool, proibido, circula com desenvoltura crescente. Muita
gente, em contato com turistas, critica abertamente o regime, mesmo tendo a
consciência dos cuidados necessários para não publicizar em demasia suas
opiniões. Alguns dizem mesmo que tudo o que lhes é proibido faz a festa dos
aiatolás, como orgias regadas a drogas e álcool.
Tudo no Irã parece ter duas faces, uma interna, outra externa, contraditórias.
Em suas casas, na intimidade, as pessoas se dão o direito de ser e agir
livremente, como lhes convém; nos espaços públicos, transformam-se, por
instinto de sobrevivência. Até mesmo a arquitetura iraniana simbolizaria esta
dualidade: por fora, a simplicidade; por dentro, a suntuosidade, como se pode
verificar no complexo de palácios de Reza Pahlev, transformado em museu.
Toda transgressão é passível de prisão ou mesmo de morte, dependendo de
quão ofensiva ao Islã é considerada. Todavia, segundo alguns iranianos, há
muito já se percebe um certo jogo de faz de conta em relação a certas práticas.
A proibição às bebidas alcoólicas, por exemplo, seria um pouco mais relaxada
em Shiraz, onde a produção de vinho se iniciou em 2500 a.c. O mesmo
aconteceria com a maconha. Em ambientes internos, mesmo públicos,
mulheres de despem dos véus. Até o homossexualismo feminino seria
tolerado, em alguma medida, enquanto o masculino resultaria em morte
implacável.
Na verdade, a mudança das mentalidades e as lutas que se travam em favor
da modernização da sociedade acabam por ser, ainda que de forma limitada,
absorvidas pelo regime. A política de linha dura já não se sustenta com
facilidade. Os mais jovens querem conhecer outras possibilidades, mesmo
sabendo de sua existência apenas pelas mídias sociais, cujas restrições ao
acesso acabam conseguindo burlar, e por contatos com estrangeiros. Os mais
velhos se dividem, entre os que têm saudade daquilo que identificavam como
liberdade na época do Xá e os que se apegam aos dogmas religiosos
supostamente encarnados pelos aiatolás.
É fato que a mídia ocidental conseguiu demonizar o Irã perante a opinião
pública mundial, como parte da estratégia hegemonista do Império
estadunidense. O que ela talvez não se dê conta é de que, a despeito das
contradições internas do país e da fratura que ocorre em seu tecido social, em
que os anseios por mudanças profundas se contrapõem ao conservadorismo e
à ditadura dos aiatolás, os iranianos se unem quando se trata de defender os
interesses nacionais e de se contrapor à dominação que os Estados Unidos
pretendem impor à região. Sabem, como ninguém, que a política externa
estadunidense é diretamente responsável pelo surgimento de grupos como a
Al-Qaeda e o Estado Islâmico, e que o Império navega conforme a corrente.
O Irã está para explodir, mais dia, menos dia, por suas contradições internas.
Onde vai parar, os próprios iranianos não se arriscam a dizer. Sabem apenas
que a ditadura religiosa se enfraquece a cada dia e que dificilmente se
prolongará por muito tempo. É provável, contudo, que, neste momento, os
conflitos sejam colocados de lado, e que Estado e sociedade se unam para
defender sua história e sua soberania. Não importa, para o povo mais
simpático do mundo, que o inimigo seja incomparavelmente mais poderoso.
Importa, sim, não se deixar humilhar pelo Império e seus interesses
expansionistas.
Que o digam as multidões nas ruas no funeral de Soleimani!