Um memorial para os inumeráveis: se números frios não tocam a gente, que histórias de vida possam tocar

“O X da questão talvez seja amar
Por isso não seja tão indiferente
Se números frios não tocam a gente
Espero que nomes consigam tocar.”
BRÁULIO BESSA / CHICO CÉSAR

Após 1 ano de pandemia, ao fim de Março de 2021 o Brasil contabiliza mais de 300.000 óbitos oficiais por covid19, além de mais de 12 milhões de casos da doença já registrados (Dados: Johns Hopkins Covid Map, 25/03/21). Considerando que globalmente as mortes ultrapassaram 2 milhões e 750 mil, isto equivale a dizer que de cada 9 pessoas que morrem no mundo por covid, uma é brasileira. Mas não estamos aqui hoje para falar de números.

Vivemos tempos tão sinistros que precisamos reivindicar o óbvio: cada uma das vidas perdidas não equivale a um número nem merece ser apenas um algarismo numa estatística. Cada uma das brasileiras e dos brasileiros que se foi era uma pessoa em carne viva que teve seus sonhos e planos brutalmente interrompidos. Cada um deles e delas morreu contra a sua vontade, pois nenhum era suicida: todos adoeceram e não puderam convalescer, todos perderam a contragosto o bem mais básico, aquele que fundamenta todos os outros bens e males que podemos usufruir ou padecer: a vida. 

O projeto Inumeráveis pretende ser um memorial para todas as pessoas ceifadas pela pandemia de covid19 e pelo pandemônio instalado pelo necrogoverno de Bolsonaro. Em seus posts do Instagram – em um perfil que já reúne quase 100.000 seguidores – a mesma frase sempre encerra o meme de memória: “não é um número”. 

Cada meme carrega a responsa de uma tarefa impossível: a tentativa de síntese de um destino humano, de uma história de vida, em apenas uma frase. Nomeia-se também o nome da vítima, apontando que, perdida a carnalidade da pessoa, resta ainda o vestígio do verbo, a resiliência de uma narrativa, a insurgência da beleza contra a brutalidade de uma ideologia política – o Bolsonarismo – que mostrou-se explicitamente como uma máquina mortífera das mais malignas que já se pôs em marcha neste país.

Inspirado no projeto, o poeta Bráulio Bessa fez os versos que depois Chico César musicou com ajuda da orquestração e coro dos músicos da USP: “Inumeráveis” tornou-se também um belíssimo videoclipe (veja na abertura deste artigo), demonstrando nestes dias difíceis toda a “força da arte que transforma“, apesar de termos perdido também tantos artistas ímpares nesta pandemia, como Aldir Blanc e Sérgio Santanna.

Um outro poeta-cantor, falecido aos 36, em virtude de outro vírus (o HIV), colocou uma questão que merece ecoar em nossas mentes: Renato Russo em “Fábrica” perguntava: “de onde vem a indiferença temperada a ferro e fogo?”

Nosso presifake, chefe supremo da “República das Milícias” descrita magistralmente por Bruno Paes Manso, parece determinado a inaugurar a era da Indiferença Ostentação. Diante da pilha de cadáveres inumeráveis que sua criminosa negligência e seu negacionismo genocida ajudou a produzir, pergunta com frieza de psicopata: “chega de frescura e mimimi, vocês vão ficar chorando até quando?”

A performance, que muitos de nós diagnosticam como típica de um psicopata, é realizada por alguém que se acha o machão viril, cuja função seria incentivar a disseminação do vírus, produzindo a famigerada “imunidade de rebanho”.  É isto os que imbecis desumanizados pela ideologia da extrema-direita chamam de “Mito”, quando deveriam já ter percebido que ele não passa de um doentio mentiroso compulsivo?

Indignados diante de tal conduta, não só indigna de um estadista mas que aponta para o grave quadro de retardo moral de Jair Bolsonaro, muitos de nós temos aderido ao costume um pouco mórbido de sacarmos com alarde – e com uma certa justiça – o número dos mortos evitáveis causados pelo desgoverno.

A imprensa tenta dar concretude à magnitude de nossa tragédia e fala, por exemplo, em “3 Maracanãs lotados” de vidas ceifadas após 1 ano de pandemia no Brasil, como fez a BBC. Rapidamente desatualizados diante de um processo de morticínio que não cessa nem estanca, os números de infectados e de mortos crescem de maneira assustadora, o que nos traz o risco da banalização.

A normalização do absurdo pode ser combatida desde que assumamos a tarefa coletiva e cidadã de manter viva a empatia e a solidariedade em um contexto onde o moralmente minúsculo “líder” neofascista Jair Bolsonaro desdenha do imensurável sofrimento humano que sua necropolítica vem acarrentando e cospe sem dó sobre o luto e a perda de dezenas de milhares de brasileiros.

Matéria da BBC Brasil:


“Se eu morrer, não me tratem como mero número” – um desejo assim talvez pulse em cada um de nós. O mínimo que precisamos para morrendo minimamente consolados é saber que algo de nosso trajeto existencial será biografado, deixará rastros, será narrado, escapará do esquecimento completo. Não só de pão vivem os humanos, também somos famintos de sentido. A brutalidade do Bolsonarismo, seu niilismo insano, consiste também em nos negar em massa o direito a uma boa morte, à construção de um sentido para nossa finitude e impermanência.

O projeto Inumeráveis é uma insurgência contra isto e atende à vontade humana, legítima e inextirpável, de que possamos escapar da putrefação da carne através do veículo da palavra animada pela memória alheia. Uma das consolações para a condição humana é saber que a finitude inelutável permite que viremos lembrança nos que ficam e sobrevivem.

Os que ficam vivos, nutrindo a chama da lembrança do que fomos, fazendo de nossa passagem passageira por este mundo algo que possa, mesmo que minimamente, ecoar, acabam por transformar a morte em algo que, apesar de certa, é relativamente transcendível, já que somos os únicos animais na natureza capazes de memória voluntária – só nós erguemos monumentos, fazemos documentários, tiramos fotos e fazemos filmes em nossa infindável luta contra o esquecimento. 

A atitude de Jair Bolsonaro, tendo isto em mente, parece francamente desumana, e o digo literalmente – se é humano desejar que a morte seja vestida e adornada com tudo aquilo que possa atenuar sua inerente brutalidade, no caso do presifake fraudulento do Brasil há uma ostentação do vício, a propagação deliberada de uma “indiferença temperada a ferro e fogo” – ele nem mesmo faz a tentativa de imitar a virtude.

Em 1 ano, não ouvimos de sua boca nada que se assemelhe a pêsames ou palavras de condolências a quem perdeu um ente querido. Jair Bolsonaro nem mesmo consegue ser hipócrita (“A hipocrisia é uma homenagem que o vício presta à virtude”, dizia La Rochefoucauld) – diante de Brumadinhos e pandemias, não tem nem mesmo a dignidade fingida de homenagear os mortos com lágrimas de crocodilo. 

Alguns o elogiam de “autêntico”, mas como elogiar isto quando a falta de empatia e a crueldade são os elementos autenticamente expressadas, sem nenhuma máscara? Este senhor cruel, de sobrenome “Messias”, ainda tem a pachorra de se declarar cristão – e de usar, para seu populismo barato, o slogan “Deus acima de todos”.

Se o cristianismo é isto, e implica tamanho colapso da empatia diante do sofrimento do próximo, estaríamos de fato melhor enquanto sociedade se fôssemos todos ateus. Ainda bem que há outros cristianismos e que não confundiremos nunca a parte com o todo: suspeito que o cristofascismo Bolsonarista certamente despertaria em Jesus de Nazaré um asco dos mais irreprimíveis. 

por uma nova comissão nacional da verdade

Os números, porém, são importantes num certo sentido: estão envolvidos numa reivindicação cívica que já está se tornando uma das principais tarefas históricas desta geração, ou seja, a reativação da Comissão Nacional da Verdade e a revelação dos fatos sobre a extensão da tragédia sanitária que hoje atravessamos.

Sabemos que os números oficiais de óbitos, no Brasil, são tão fake quanto a suposta competência logística do General Pazuello, o terceiro a ocupar o Ministério da Saúde e um dos responsáveis pela catástrofe que hoje vivenciamos e que tem no “Capitão Cloroquina” seu principal perpetrador.

O grau de subnotificação é tão obsceno, tão grotesco, que ficamos estarrecidos com a cara-de-pau de Bolsonaro: segundo a expressão de Vladimir Safatle, ele “se acha capaz de esconder os mortos”.



VLADIMIR SAFATLE em entrevista à AGÊNCIA PÚBLICA

 Em Dezembro de 2020, a BBC calculou em 50% o grau de subnotificação no país – isto significa que os 300.000 mortos, contabilizados em Março de 2021, são na verdade mais de 410.000 cadáveres. Sim, o Brasil já perdeu quase meio milhão de vidas para covid19. 

“Esconder os mortos” era um dos esportes prediletos de muitos dos milicos chumbo-grosso que Bolsonaro idolatra e que perpetraram atrocidades pela América Latina no período sombrio onde vigiam por aqui regimes baseados no terrorismo de Estado: no Brasil, no Chile, na Argentina, no Uruguai, na Guatemala, dentre outros países do continente, a palavra desaparecidos políticos tem um sentido oculto muito assustador…

“Desaparecer” com um antagonista político é um eufemismo que esconde o fato de que os “desaparecidos” foram vítimas de crimes por parte de agentes do Estado: assassinatos seguidos por ocultação de cadáveres. Rouba-se assim aos familiares o direito de um velório, de um ritual de enterro do ente querido. Condenava-se os sobreviventes a nunca completarem a elaboração do luto.

Sobre as pessoas que, traumatizadas pela perda, buscavam notícias sobre os restos mortais de seus entes amados desaparecidos pela Ditadura Militar, Jair Bolsonaro, quando era um deputado do baixo clero no Congresso Nacional, tratava com todo o deboche possível: posava sorridente para a foto diante de um cartaz que afirmava que “quem procura osso é cachorro”.

O Vírus da masculinidade tóxica

Outro elemento desta equação sinistra: a doença moral de que Bolsonaro é o hospedeiro, e que contagia seus Bolsocrentes a ponto de gerar uma pandemia de retardo moral, tem tudo a ver com aquilo que Rebecca Solnit chama de “Masculinistão”. 

Bolsonaro e sua seita consideram-se machos pra cacete, ao estilo de Rambos durões, quando demonstram indiferença pela morte em massa, quando ostentam apatia diante do sofrimento alheio, quando dizem “e daí?” diante do luto de milhares que choram a perda de entes queridos. São hospedeiros do vírus da masculinidade tóxica. Pra eles, chorar é coisa de mulheres frágeis ou de veados afeminados.

Cada vez que abre a boca, Bolsonaro infecta o ambiente com sua macheza tóxica, dizendo a mulheres que algumas delas não merecem ser estupradas pois são muito feias, ou ensinando aos pais que um filho que toma muita porrada desde cedo não fica viadinho.

Esta macheza tóxica é tanto pior quanto mais busca justificar-se com argumentos religiosos, como se o próprio Deus Pai, representado como macho, fosse o instituidor originário de um status quo onde o princípio masculino deve tiranizar a sociedade – nisto Bolsonaro não difere muito da “lógica Taleban” que Solnit analisa:

“Os homens que tentaram assassinar Malala Yousafzai, de 14 anos, por falar sobre o direito das mulheres paquistanesas à educação, estão tentando silenciar e punir as mulheres por reivindicarem voz, poder e o direito de participar. Seja bem-vindo ao Masculinistão…” (SOLNIT, Cultrix, p. 46). 

É legítimo perguntar se os assassinos de Marielle Franco, e também seus mandantes ainda impunes, não são também eles membros do clube que eu chamaria de Milicianato Masculinista. É verdade que a presunção de inocência é um dos mais básicos itens jurídicos em um Estado Democrático de Direito, e que não é justo acusar a família Bolsonaro deste crime apenas com convicções desprovidas de prova (como fez a Lava Jato na fraude de lawfare contra Lula, que feriu de morte a legitimidade das eleições de 2018).

Mas os indícios são inúmeros de que o homicídio perpetrado contra Marielle só pôde acontecer devido a um mindset típico do Bolsonarismo, esta doentia ideologia que turbina as patologias masculinistas e armamentistas. 

Com Trump e Bolsonaro entramos numa era bizarra que torna South Park um desenho animado que começa a soar politicamente realista, quase um documentário de nossos tempos históricos nos EUA e no Brasil neo-colonizado pelo Império Yankee: são presidentes trolladores com a idade mental de Eric Cartman. Ao invés de governar, twittam sadismos. Ao invés de proteger vidas através de políticas públicas sensatas, ostentam pica-grossa no Zapistão. Mas quando se trata de debate político ao vivo, sabemos que Bolsonaro se mostra o maior dos covardões, como fez na campanha eleitoral de 2018, morrendo de medo de enfrentar Fernando Haddad nos debates – e dá-lhe atestados médicos para justificar sua “fuga”.

Os Bolsonaristas posam de machões, odeiam estes ímpetos feminis, este chorôrô e este mimimi de lamentar vidas perdidas, mas no fundo são a encarnação da covardia. Não tem um pingo da coragem ética elementar que consiste em assumir a responsabilidade pelos nossos atos diante da coletividade. Vejam a arrogância insuportável de Bolsonaro, sua boca-de-esgoto vomitando atrocidades na plena certeza da impunidade: ele tem certeza de que é inimputável, está convicto de que agir com a máxima irresponsabilidade é o caminho para que nunca seja responsabilizado.

É a nova face da banalidade do mal: ao discurso do criminoso nazista Eichmann de que “eu só seguia ordens” (e “ordens são ordens”, como cantava ironicamente a Legião Urbana em “Metrópole), agora chegamos a este cúmulo da covardia: “eu não assumo responsabilidade nenhuma por nada que tenha acontecido de mal durante o meu governo!” A culpa, vocês sabem, era do PT, agora é de governadores e prefeitos, ou de esquerdistas doutrinadores que ficam espalhando marxismo cultural e kits gay nas escolas…

Lembrar as histórias de vida por trás dos números, os destinos encarnados por trás das estatísticas, é importantíssimo, mas não descartemos totalmente aquilo que pode ajudar o mundo a compreender a magnitude da tragédia brasileira. Os dados Johns Hopkins ou da WorldMeters sobre o Covid são importantes para dimensionar a extensão das situações sanitárias diferenciais dos territórios e mostrar a extensão da catástrofe acarretada pela desgovernança Bolsofascista, recentemente eleita pelo rankeamento do Lowy Institute da Austrália como o pior do planeta (98º lugar, com nota 4 em um total de 100, pra quem gosta de números…).

No entanto, estejamos sempre alertas: há o risco de que “números frios não possam nos tocar”, como escreveu Bráulio Bessa musicado por Chico César. “Espero que nomes consigam tocar!” Pois “não são apenas números, são inumeráveis!” 

INUMERÁVEIS

André Cavalcante era professor

amigo de todos e pai do Pedrinho

O Bruno Campelo seguiu seu caminho

Tornou-se enfermeiro por puro amor

Já Carlos Antônio, era cobrador

Estava ansioso pra se aposentar

A Diva Thereza amava tocar

Seu belo piano de forma eloquente

Se números frios não tocam a gente

Espero que nomes consigam tocar

Elaine Cristina, grande paratleta

fez três faculdades e ganhou medalhas

Felipe Pedrosa vencia as batalhas

Dirigindo Uber em busca da meta

Gastão Dias Junior, pessoa discreta

na pediatria escolheu se doar

Horácia Coutinho e seu dom de cuidar

De cada amigo e de cada parente

Se números frios não tocam a gente

Espero que nomes consigam tocar

Iramar Carneiro, herói da estrada

foi caminhoneiro, ajudou o Brasil

Joana Maria, bisavó gentil.

E Katia Cilene uma mãe dedicada

Lenita Maria, era muito animada

baiana de escola de samba a sambar

Margarida Veras amava ensinar

era professora bondosa e presente.

Se números frios não tocam a gente

Espero que nomes consigam tocar

Norberto Eugênio era jogador

piloto, artista, multifuncional

Olinda Menezes amava o natal.

Pasqual Stefano dentista, pintor

Curtia cinema, mais um sonhador

Que na pandemia parou de sonhar

A vó da Camily não vai lhe abraçar

com Quitéria Melo não foi diferente

Se números frios não tocam a gente

Espero que nomes consigam tocar

Raimundo dos Santos, um homem guerreiro

O senhor dos rios, dos peixes também

Salvador José, baiano do bem

Bebia cerveja e era roqueiro

Terezinha Maia sorria ligeiro

cuidava das plantas, cuidava do lar

Vanessa dos Santos era luz solar

mulher colorida e irreverente

Se números frios não tocam a gente

Espero que nomes consigam tocar

Wilma Bassetti vó especial

pra netos e filhos fazia banquete

Yvonne Martins fazia um sorvete

Das mangas tiradas do pé no quintal

Zulmira de Sousa, esposa leal

falava com Deus, vivia a rezar.

O X da questão talvez seja amar

por isso não seja tão indiferente

Se números frios não tocam a gente

Espero que nomes consigam tocar

WALTER BENJAMIN E O ANJO DA HISTÓRIA, CIORAN E OS LIMITES DA EMPATIA

 


 

Estatísticas da Covid19 em 12 de Março de 2021

O Anjo da História de Walter Benjamin olhava para o passado e via uma montanha de escombros se acumular e subir até o céu. Nós, no Brasil de 2020-2021, vemos a pilha de cadáveres subindo até alcançar as nuvens de fumaça da Amazônia em chamas. A tarefa que o tal do Anjo se colocava, enquanto um vento soprado do paraíso o impelia de costas no rumo do futuro, era acordar os mortos e reconstituir algum sentido e alguma coesão a partir da montanha de ruínas. 

Acredito que nossa resistência humanitária contra a barbárie reinante passa hoje por um trabalho necessário com os mortos – não só no sentido mais literal e concreto possível, ou seja, para o evitar colapso funerário e contaminação de solo, alimentos e e lençol freático, como alertou Miguel Nicolelis, mas no sentido mais alegórico e metafórico, para evitar que o cortejo dos vencedores covardes tratem mortes evitáveis e vidas perdidas como se nada fossem (e “parem de mimimi”).

Esta é a nossa tarefa, de nós que queremos ser a resistência contra a barbárie e que por isto temos que ser os resolutos combatentes contra a civilização masculinista, teocrática, heteropatriarcal e necrocapitalista: não permitir que os mortos da covid19 sejam reduzidos a números, subsumidos a estatísticas, esquecidos por detrás de uma enxurrada de dados.

Não podemos ser “frios e calculistas”, mas devemos, como fez Chico César em sua interpretação da canção de Braulio Bessa, cantá-los e comover os sobreviventes a relembrá-los. Os crimes de Bolsonaro não serão esquecidos desde que sigamos pondo lenha na memória destes inumeráveis, transformando-os, na medida dos nossos possíveis, em inesquecíveis.


 

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Esta resistência que resiste a permitir o esquecimento das vidas perdidas, ou a minimização da magnitude das perdas, passa também por uma das coragens mais difíceis e esquivas, uma coragem de que talvez não sejamos psiquicamente capazes em meio aos desafios extremos que a conjuntura pandêmica coloca à nossa saúde mental: a coragem da empatia radical. Ser solidário com o outro implica ir com ele aos cumes do desespero, sentir o que ele está sentindo em seus piores momentos e enquanto atravessa as crises mais extremas.

Devemos evitar transformar as vidas em carne-e-osso, que agonizaram sem conseguir leitos de UTI, que não puderam mais respirar por falta de oxigênio, em números descarnados, com os quais poderíamos lidar de maneira fria e calculista, limpando de afetos incômodos a nossa consideração do problema. Negar a extensão do sofrimento dos doentes pois ainda estamos sadios também consiste num modo comum de negacionismo. A psiquê humana, é natural, é avessa a imaginar a experiência subjetiva, as dores físicas e os tormentos psíquicos de cada uma dessas pessoas que agonizaram sem volta e morreram de covid.

Há uma solidão quase impenetrável na experiência subjetiva daqueles que morreram, distantes de familiares e amigos, testemunhados em seus últimos suspiros por médicos e enfermeiros, e quase ninguém deseja fazer a experiência de empatia radical quando esta consiste em tentar compreender e sentir as sensações de “afogar no seco” que o colapso respiratório covídico implica para suas vítimas.

É mais fácil colocar entre nós e as vítimas, agonizando em sua asfixia, vítimas da negligência criminosa do Estado bolsonarista, o anteparo dos números. É mais cômodo não empatizar e assim tentar manter, na medida do possível, o alto-astral, o gosto de viver, alguma espécie de narcisismo salutar: “ainda bem que não aconteceu comigo, e não vou ficar sofrendo pelos outros!” A questão é: não estaremos assim colaborando com o opressor e seu desejo de apagar os rastros de destruição, não estaremos assim fazer o jogo daqueles que produziram esta carnificina? Aqueles que morreram a contragosto, ceifados da vida nesta pandemia, não merecem de nós que nos esforcemos por lembrá-los, em suas carnalidades e biografias, em suas singularidades e em seus sofrimentos? Ao invés de serem relegados ao escuro silêncio de túmulos onde a justiça apodrece junto com os cadáveres, enquanto os perpetradores do morticínio seguem empoderados? 

Sobre o tema, Emil Cioran escreveu, no “Breviário de Decomposição”, as palavras mais fortes que conheço, um autêntico tratado de psicologia humana que indica a dificuldade extrema deste tipo de empatia que envolve um compadecimento de que somos, em larga medida, psiquicamente incapazes – pois, se fôssemos de fato radicalmente compassivos, o sofrimento do mundo, invadindo os estreitos limites da nossa subjetividade, perigaria nos explodir por dentro por excesso de dor:


“Quem chegasse, por uma imaginação transbordante de piedade, a registrar todos os sofrimentos, a ser contemporâneo de todas as penas e de todas as angústias de um instante qualquer, esse – supondo que tal ser pudesse existir – seria um monstro de amor e a maior vítima da história do sentimento. Mas é inútil imaginarmos tal impossibilidade. Basta-nos proceder ao exame de nós mesmos, praticar a arqueologia de nossos temores. Se avançamos no suplício dos dias, é porque nada detém esta marcha, exceto nossas dores; as dos outros nos parecem explicáveis e suscetíveis de ser superadas: acreditamos que sofrem porque não têm suficiente vontade, coragem ou lucidez. Cada sofrimento, salvo o nosso, nos parece legítimo ou ridiculamente inteligível; sem o que, o luto seria a única constante na versatilidade de nossos sentimentos. Mas só estamos de luto por nós mesmos. Se pudéssemos compreender e amar a infinidade de agonias que se arrastam em torno de nós, todas as vidas que são mortes ocultas, precisaríamos de tantos corações quanto os seres que sofrem. E se tivéssemos uma memória milagrosamente atual que conservasse presente a totalidade de nossas penas passadas, sucumbiríamos sob tal fardo. A vida só é possível pelas deficiências de nossa imaginação e de nossa memória.” – CIORAN, ‘Breviário de Decomposição’

Jair Bolsonaro é certamente um sujeito retardado moral, além de um deficiente cognitivo, mas talvez nisto esteja boa parte de seu poder de sedução de massas: ele libera os piores demônios de nossa natureza, convida a pensar que se pode ser rico e poderoso jogando no lixo quaisquer escrúpulos, estende a nós a atração de uma irresponsabilidade que estamos sempre prontos a acatar. Pois aceitar a responsabilidade é um fardo, assumir a responsa é um novo peso na existência, faz com que viajar pela vida seja mais difícil, como um viajante que leva bagagem mais pesada: não temos mais toda aquela “leveza” que Regina Duarte, em sua breve passagem pela Secretaria de Cultura pregou e que Gregório Duvivier tão bem ironizou. Um sujeito responsável carrega consigo o peso de seus valores, seus princípios e da reiterada necessidade de refletir, diante das encruzilhadas da ação, sobre quais as decisões mais sábias.

Jair Bolsonaro cospe em tudo isto: se houvesse possibilidade de aplicar um exame de ética e quantificar as virtudes ou excelências morais dotadas pelo sujeito sob análise em uma nota númerica, ele estaria muito próximo de tirar um zero. Nota zero em ética, Bolsonaro também é zero em saúde pública – transformou-se num atentado ambulante contra a saúde de todos. Este retardado ético, este monstro moral, tem se mostrado uma das pessoas mais nefastas do século. Diante disso, não podemos nos contentar com uma vitória meramente moral, a crença na nossa superioridade, pois nossa vitória precisa ser concreta e para isto são indispensáveis as armas da política. Estas não serão de muita serventia sem a empatia radical fundamentando nossa solidariedade social.

Parte da solução para a superação da lamentável “captura de massas” que a insensibilidade Bolsonarista produziu está numa radical re-sensibilização: a empatia radical é um afeto revolucionário. Mas a revolução não é nenhum picnic. 

Ouso pedir a meus concidadãos: tenham a coragem de sofrer com os outros, de chorar pelos mortos e pelos doentes, de se compadecer pelos sequelados que nunca terão os mesmos pulmões que tinham antes. Tenham a coragem de partilhar angústias e revoltas, de nunca fingir que está tudo bem! 

Tenham a coragem de sempre repudiar aqueles que querem transformar uma tragédia brutal tão lamentável como esta, tão digna de choro e de rebeldia, em apenas frescura e mimimi. Saibam sempre que o luto e a luta não são impossíveis de conjugar. Saibam que a indiferença ao sofrimento alheio e a capacidade de revolucionar o sistema social que produz este sofrimento são inarmonizáveis e nunca conjugáveis: só a indignação por um sofrer injusto imposto a outrem é um afeto autenticamente revolucionário, nunca a resignação ou a apatia. 

Faremos uma revolução, se a fizermos, com lágrimas nos olhos e a indignação aflita queimando nos nossos corações. Sendo os aliados dos mortos inumeráveis, que precisamos transformar também em inesquecíveis, seremos aqueles que reavivam o “dom de despertar no passado as centelhas da esperança” diante do risco supremo: “também os mortos não estarão em segurança”, como alertou Walter Benjamin, “se o inimigo vencer”:

“O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.” (BENJAMIN, 6ª Tese Sobre o Conceito de História)

É um bom começo – mas só um começo – que continuemos nutrindo a arte que rememora os inumeráveis: se números frios não tocam a gente, que histórias de vida possam tocar.

Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, Março de 2021
www.jornalistaslivres.org/inumeraveis

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENJAMIN, Walter. Teses sobre o Conceito de História.

BESSA, Bráulio; CÉSAR, Chico. Inumeráveis. Poema, canção e materiais audiovisuais derivados.

CIORAN, Emil. Breviário de Decomposição. 

SAFATLE, Vladimir. Entrevista à Agência Pública.

SOLNIT, Rebecca. Os Homens Explicam Tudo Para Mim.

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Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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