“Si indio fue la palabra con la que nos oprimieron, indio será la palabra con la que nos liberaremos”. Assim se expressa Ariruma Kowii Maldonado, falante de quichua no Equador e reputado intelectual da América Latina (Kowii 2007, 118). Por sua vez, João Maria Tapiri Rodrigues do Brasil reflete: “meu lado branco vai morrer sem entender meu lado índio” (citado em Ramos 1998, 284). Tal é o grau de complexidade quando se trata de conceitos interétnicos. Começo pelo evento fundador, como diz Paul Ricoeur (1978), que gerou a problemática do ser indígena, o ponto de encontro – ou, melhor dizendo, desencontro – entre o velho e o novo mundo.

 

 

 

 

 

Em busca de novos espaços, segundo Carlos Fuentes (1992), ou de apetecidas especiarias (Zweig 2012), os europeus empreenderam o que talvez tenha sido a maior aventura humana da história mundial. Muniram-se da tecnologia de última geração para enfrentar vastos oceanos desconhecidos, mas também do imaginário da época para arrostar seres, humanos ou não, que viessem a encontrar, como o elaborado perfil do Homem Silvestre (Bartra 1997). Num processo de ensaio e erro verdadeiramente assombroso, encontraram a América. O Novo Mundo passou então a ser um imenso laboratório onde os europeus se ocuparam com singulares experiências na ciência e arte de dominar a alteridade humana e não humana.

Se dermos crédito à história não totalmente crível de que Cristóvão Colombo, fundeado no Caribe, se imaginava na Índia (Hulme 1986), e por isso chamou de índios aos humanos que lá encontrou (Todorov 1985), podemos igualmente supor que ele, Américo Vespucci ou qualquer outro navegador europeu, tendo nomeado América o novo continente, passaria a chamar seus habitantes de americanos. Mas não, esse título estava reservado para um futuro contingente humano que faria da hibridização norte atlântica o seu tanque de compostagem geopolítica. Sintomaticamente, o deslocamento do termo índio da Índia para a América desvela mais do espírito europeu do que aparece ao olhar desatento. Desde os primeiros contatos, os habitantes das Américas foram alvo de abusos, discriminação e preconceitos criados à imagem dos “outros” da Europa. O extremo oriente e o oriente próximo transformaram-se em laboratórios europeus na fabricação de alteridades inferiorizadas e subalternas, como bem demonstrou Edward Said (1979). Portanto, não surpreende que o termo índio fosse plasmado à imagem de um subcontinente tido como cultural e politicamente deficiente, numa operação metonímica bem ao gosto europeu. A palavra índio encheu-se então de uma possante carga semântica negativa que vem atravessando os séculose hoje ainda é usada como insulto em muitos países americanos. A ironia contida no léxico geopolítico contemporâneo está em nos referirmos à Europa como “Ocidente” – um hemisfério desenvolvido, esclarecido, produtor e consumidor de democracias – quando basta olhar para o globo terrestre e ver que quem está a ocidente do “mundo civilizado” são exatamente esses “índios” que a Europa e seus descendentes americanos dilapidaram ao longo de séculos ininterruptos. Como diz a Wikipedia, “a América é o único continente a situar-se com seu território totalmente dentro desse hemisfério” – o hemisfério americano!

A inabilidade europeia de se debruçar sobre a riqueza do específico, do local, tem levado gerações de descobridores e colonizadores a generalizar a realidade do mundo indígena, à moda do “quem viu um, viu todos”. O resultado é uma visão uniforme, calculadamente desinformada e perniciosa que opera em perfeita harmonia com a vocação expansionista e dominadora do “Ocidente”, fazendo de magníficos mundos humanos uma imensa tabula rasa à espera da conquista e da dita civilização. Essa incapacidade de apreciar a beleza da alteridade multivariada está intimamente unida a uma deficiência léxica – que também é ideológica – das línguas europeias para reconhecer o valor do outro legitimamente distinto de si mesmo e para discernir o específico, o sui generis. De que palavra ou palavras dispõem as nossas línguas indo-europeias para se referir ao uno e ao múltiplo ao mesmo tempo? Que eu saiba, nenhuma(s). Contrastemos, então, a rigidez euroamericana com a disposição indígena de se abrir para o outro, como tanto insistiu Lévi-Strauss (1993) .

A Europa conquistadora respondeu à sua perplexidade face ao mundo americano com os instrumentos que lhe eram próprios, ou seja, aplicar automaticamente o seu imaginário pregresso, confortavelmente digerido ao longo de séculos (homens silvestres, antípodas, monstros) ao ponto de aqueles homens do mar não acreditarem no que seus próprios olhos realmente viam. Por exemplo, a beleza e sedução das mulheres Tupinambá da costa brasileira, liricamente cantadas no relato da descoberta do Brasil (Caminha 1963 [1500]) foi imediatamente substituída por imagens de depravação e canibalismo. Os “índios” brasileiros tornaram-se assim a epítome da selvageria americana e o novo continente transformou-se num palimpsesto de imagens sobrepostas advindas da história greco-cristã (as Amazonas, por exemplo). A América profunda, sustentada por sociedades plurais e igualitárias, sofreu uma deformadora cirurgia ao ser invadida pelo “sentido colonial sostenido en fundamentos universalizantes y excluyentes” e pela institucionalização da invasão europeia “a través de la fundación de villas, ciudades, iglesias, centros educativos, también con la implementación de un sistema judicial, un sistema político y la construcción de una ideología que se fundamentó en la exclusión y en el racismo. En suma, la maquillaje de América” (Kowii 2007, 115-116).

Ao longo do tempo, reações como essa de Ariruma Kowii têm provocado uma espécie de consciência incômoda em alguns setores da sociedade dominante. Hoje há um certo constrangimento em se pronunciar o vocábulo “índio”, que vem sendo substituído pelo mais ameno “indígena” ou por termos como nativo, ameríndio, originário, autóctone ou mesmo aborígene. No dicionário Aurélio da língua portuguesa, todos esses termos denotam habitante natural, primitivo, da terra, em oposição ao estrangeiro. No entanto, o sentido de inferioridade se mantém no senso comum. Não é por acaso que o movimento nativista brasileiro do século XIX evocou a figura do índio para construir um sentido de nacionalidade própria, independente de influências estrangeiras.

Tentativas mais enérgicas de romper a pecha da inferioridade incluem a insistência canadense na expressão First Nations e na mais anódina Native Americans estadunidense. Porém, a reação mais contundente é aquela apresentada acima por Ariruma Kowii e por muitos outros indígenas das Américas: transformar um estereótipo negativo em conceito político em prol da legitimação da diferença. O custo da colonização da consciência só é minimizado quando os povos originários das Américas conseguem reunir as forças e os instrumentos para encetar o caminho inverso: a consciência da colonização, na feliz expressão de Jean e John Comaroff (1991, 224). Essa é a condição sine qua non para o nascimento da crítica indígena à razão colonial. Tomar noções arraigadas nas mentes colonizadoras, como é a de índio, extrairlhes a virulência moral e transformá-las de insulto em louvor é uma operação que nada tem de simples. Depende do trabalho da história que com seus cruéis servidores – esbulho, morte, desordem, agonia – esculpe e fortalece novas consciências e novos atores nessa arena de infinitas contradições, que é o campo interétnico. O continente americano pode-se jactar de ser um cenário em que da dor e do caos brotaram seres humanos com uma resiliência provavelmente inédita na história do planeta. Chamem-nos índios, indígenas, nativos, ou o que seja, mas meio milênio de destruição não tem sido capaz de extirpá-los do prodigioso celeiro que é a humanidade.

Quem é indígena e quem não é? Oficialmente, o reconhecimento étnico depende dos poderes estabelecidos. Nos Estados Unidos, ele se faz através do blood quantum, um dogma político racista e genocida, segundo os próprios indí- genas (Jaimes 1992). No Brasil, é considerado índio quem assim se reconhece e é reconhecido. Há ainda os fenômenos wannabe, índios amadores que enfurecem os “originários”, e etnogênese, indianidade redescoberta que cobra da história a responsabilidade pelo apagamento étnico e demanda do Estado medidas de reconhecimento. Trata-se, portanto, de um campo aberto para configurações e reconfigurações, de disputas por tradição e território tendo por marco o aparato ideológico que atende pelo nome de indígena.

 

ALCIDA RITA RAMOS –  Graduada em geografia pela Universidade Federal Fluminense (1959), de mestrado em Antropologia na University of Wisconsin, Madison (1965) e de doutorado em Antropologia na mesma universidade (1972). É professora titular emérita da Universidade de Brasília e pesquisadora 1-A do CNPq. Tem-se dedicado ao estudo das sociedades indígenas, em especial, Yanomami, e atualmente desenvolve pesquisas sobre indigenismo comparado na América do Sul, focalizando o Brasil, a Argentina e a Colômbia. Além de uma centena de artigos, é autora de Sanumá Memories: Yanomami ethnography in times of crisis (1995) e Indigenism: Ethnic politics in Brazil (1998), ambos publicados pela University of Wisconsin Press.

BIBLIOGRAFIA  -Bartra, Roger. 1997. Wild Men in the looking glass. The mythic origins of European otherness. Ann Arbor: University of Michigan Press. Caminha, Pero Vaz. 1963 [1500]. Carta a El Rei D. Manuel (Leonardo Arroyo, organizador). São Paulo: Dominus Editora S.A. Fuentes, Carlos. 1992. El espejo enterrado. México: Fondo de Cultura Económica. Hulme, Peter. 1986. Colonial Encounters: Europe and the native Caribbean, 1492-1797. Londres: Methuen. Jaimes, M. Annette. 1992. Federal Indian identification policy. A usurpation of indigenous sovereignty in North America. In The state of Native America. Genocide, colonization, and resistance (M. Annette Jaimes, organizadora), pp. 123-138. Boston: South End Press. Kowii Maldonado, Ariruma. 2007. Memoria, identidad e interculturalidad de los pueblos del Abya-Yala. In Intelectuales indígenas piensan América Latina (Claudia Zapata Silva, compiladora), pp. 113-125. Quito: Universidad Andina Simon Bolivar/Abya-Yala.

Publicado originalmente na Revista América Crítica. Vol. 1, n° 1. Itália, giugno 2017.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

COMENTÁRIOS

POSTS RELACIONADOS