A IMAGEM QUE FALTA

O pequeno avião monomotor sobrevoa o Parque Indígena do Xingu. Entre fazendas, plantações de soja e áreas desmatadas pela exploração de madeira, as fronteiras do parque aparecem riscadas à régua e cortadas com estilete do resto do estado. Os rios, ainda pintados à mão livre, serpenteiam, cada vez mais rasos e barrentos, engasgados com tantas hidroelétricas e desmatamento.

Depois de quase quinze anos sem pisar no Xingu, ao pousar na aldeia Kamaiurá, sou, com meus companheiros de viagem, recepcionada por uma turma de crianças nuas, pintadas, adornadas com cintos de miçangas ou fibra de buriti, mal iniciados no português, afoitas e arredias em igual medida. Ao ver essa cena, tantas vezes repetida entre idas e vindas à áreas indígenas, me emociono: a sensação é de adentrar em território livre, ainda consagrado ao equilíbrio da vida. Desejei profundamente fazer uma foto, a beleza daquelas crianças era uma bandeira. Saquei a câmera, mas não tive coragem de apertar o gatilho: não queria começar tirando algo, nem mesmo uma foto, daqueles que já me davam tanto.

A segunda imagem é bastante diversa: uma mulher muito loira, muito alta e muito magra, de biquíni, inteiramente pintada de jenipapo, sendo fotografada junto a casa dos homens, no centro do pátio. Bem vinda ao Kuarup: essa dança entre mortos e vivos, índios e brancos, intercâmbios culturais, acertos financeiros, alianças políticas internas e externas ao parque. Para além da cerimônia a ser realizada pelos mortos homenageados deste ano – Dr. Roberto Baruzzi, da Escola Paulista de Medicina, uma bebê e uma senhora Kamaiurá – o grande tema das madrugadas de vigília é a construção da rodovia 242. Destinada ao escoamento de grãos, (especialmente das fazendas de Blairo Maggi, ex-governador do Mato Grosso e atual ministro da agricultura) deve passar praticamente à porta deles. Se a estrada, por um lado, barateia e facilita a circulação, traz com ela toda sorte de mazelas: é um corte aberto no flanco, com inflamações à vista.

 

Enquanto isso os guerreiros perfilam-se para lutar, altivos, pintados com esmero, as meninas-moças se preparam para sair da reclusão, ter os cabelos cortados e voltar ao convívio da aldeia, os cantores acordam as gargantas para intermináveis horas de canto, uma anciã ascende seu longo cigarro para ver, entre a fumaça, se as almas dos mortos seguem bem sua caminhada para o outro mundo. Entre selfies e brancos, médicos e procuradores, curiosos e visitantes, troca de presentes e pequenos furtos, malocas deslumbrantes e barracas de camping, banheiros de louça terminados as pressas e a lendária lagoa do Ipavu, o complexo ritual segue seu curso. A sensação é de tremenda força e de extrema fragilidade: equilibram-se os índios entre a potência de suas tradições, novas necessidades, complexos desejos e urgências de toda sorte.

Como se já não fossem desafios suficientes, um jovem kuikuro levanta no pátio um cartaz com os dizeres: “Nossa história não começa em 1988!!! Marco Temporal Não!! #ForaTemer”. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil encontra-se em plena luta para denunciar e reverter o parecer da Advocacia  Geral da União, aprovado por Michel Temer no final do mês passado, que obriga todos os órgãos da administração federal a considerar que só têm direito às suas terras aquelas comunidades indígenas que estavam na posse delas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Se a absurda tese do Marco Temporal for adiante será mais um duro golpe para os direitos indígenas, claramente rifados em favor da bancada ruralista do congresso nacional.

Repenso na imagem das crianças cercando o avião. Na nova geração de meninos e meninas indígenas crescendo no coração deste país que segue perseguindo uma falida noção de progresso, onde apenas a lógica do lucro e do proveito é cabível. Penso em seus corpos morenos e sabidos, carregados de outras ciências e de um futuro incerto Penso em seus olhos curiosos e tento imaginar como eles vêem o mundo, que tem gente que acredita que é possível construir um mundo em que não caiba o deles. Penso na foto que eu não tirei. E na falta que essa a imagem faz no imaginário desse Brasil.

 

  • Rita Carelli é atriz, escritora, ilustradora. Entre seu livros destaca-se a coleção “Um Dia Na Aldeia” feita em parceria com a ONG Vídeo nas Aldeias e os cineastas indígenas.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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