A humanidade em carne viva

No palco, todos estavam nus. Nada mais coerente para uma peça com o nome “Autópsia” , e que rasga a carne colocando para fora as mazelas da humanidade.

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O drama encenado pelo grupo de teatro brasiliense “Sutil Ato”, que estava em cartaz em Belo Horizonte, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), coleciona uma série de elogios. Com quase 3 anos de estrada, já alcançaram cerca de 5 mil pessoas no Brasil.

Célia, Dilma, Zé, Tonho, Paco, são alguns nomes dos personagens representados, que carregam em si a dor enfrentada por prostitutas, gays, negros, travestis, desempregados, entre outros que sabem o que é miséria, por meio das constantes humilhações sofridas diariamente num mundo que insiste em dar a eles apenas uma coisa: ‘o de se tornar números’.
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Em cena, os atores gritam algumas estatísticas que nos envergonham como nação. Seguem algumas delas: “A cada 28h morre um gay em nosso país, com requintes de crueldade; Segundos dados recentes do IPEA, as chances de jovens pretos e pardos, que representam a maior parte da população pobre no Brasil, morrerem por homicídios, são 147% maiores do que de jovens de outros grupos étnicos. Além disso, de 2004 a 2014, houve um aumento de 18,2% de homicídios contra negros, e uma diminuição de 14,6% contra pessoas brancas – mais um ranking que o Brasil ocupa o primeiro lugar no mundo”.

Esses dados acima alguns brancos ricos do Morumbi, em SP, por exemplo, ignoram, ao manifestarem apoio aos policiais que mataram um menino suspeito de furto, de 10 anos, com um tiro na cabeça. Ítalo Ferreira de Jesus Siqueira, 10 anos, um garoto de família desagregada, estava ali sendo representado no palco. Jonathan Andrade, negro, gay, de Vigário Geral (RJ) – identidade que ele faz questão de afirmar – é diretor da peça baseada nos textos do escritor e dramaturgo Plínio Marcos. Ele afirma que a “Autópsia” fala do lugar do engajamento político. “Nos interessa falar sobre quem está esmagado. Sobre quem está de baixo dos escombros tentando sair deles”.

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As diferentes histórias vivenciadas pelos atores tornam os personagens conflitantes, pois trazem memórias marcantes da vida, como Maria Eugênia Félix, uma das protagonistas, que afirma: “eu nasci e cresci na periferia de Brasília. Não tive pai, não tive mãe. Fui criada por uma madrinha, onde eu resgatei várias memórias de opressão dentro de casa. Tenho duas filhas que crio sozinha. Fui abusada na minha infância. Tanto é que em vários momentos tem depoimentos pessoais mesmo… pra trazer verdadeiramente isso na carne: porque é real! Aqui ninguém finge que chora, chora realmente”. Maria Eugênia representa uma mulher que se impõe e entende seu lugar independente do que esteja exercendo.

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Um dos seus papéis é de uma prostituta, e uma das suas frases é: “a gente trabalha, trabalha, trabalha, mas no final: a gente é puta!”. E nesse grito, ela representa diversas mulheres que trabalham duro, mas não tem sua profissão regulamentada. E no tocante ao ser mulher, sobre encenar suas personagens, Maria afirma: “a vergonha que eu tinha, o medo, isso morreu em mim. Hoje eu assumo tudo o que eu passei. Assumo quem sou eu, os meus defeitos, as minhas grandes qualidades que eu sei que eu tenho. Morre o medo de assumir a vida e a história da Maria Eugênia.”

As mulheres brasileiras estavam ali representas no palco. A personagem Célia, uma jovem travesti que sonha em se ver livre das garras de sua cafetina, embriaga-se para encarar a dor diária e a humilhação que sofre. Sua teimosia e raiva a levaram à morte. Mas antes disso, ela afirma a todos na plateia: 50% dos assassinatos de travestis no mundo ocorrem no Brasil. Kate, 42 anos, assassinada a pauladas, em Imperatriz (MA); Camilla Rios, 32 anos, assassinada a tiros, em Rio das Pedras (RJ); Luana Biersack, 14 anos, assassinada com agressões e afogada, em Apucarana (PR), e outras tantas travestis estavam ali representadas no palco. Esses são alguns dos personagens apresentados em Autópsia. São muitas as narrativas expressadas em palco que arrancam das entranhas da sociedade um mal que, por vezes, ela insiste em esconder. E diante disso, a peça deixa o questionamento:

– Para aonde vamos?

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Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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