Por Rudá Ricci, cientista político e presidente do Instituto Cultiva
Não passou despercebido de ninguém o quanto as redes sociais acolhem ataques extremamente agressivos. Postagens amorais são frequentes revelando um total descontrole emocional. Bolsonaristas são campeões dessa prática, mas outros agrupamentos políticos – mesmo aparentemente progressistas – têm seus cães de caça a postos para atacar os que não pensam como eles ou até os que sugerem uma reflexão mais crítica sobre seu próprio campo político.
William J. McGrath, historiador da Universidade de Rochester que se dedicou aos estudos da cultura política austríaca e da vida e teoria de Sigmund Freud, lançou em 1988 o livro “Política e Histeria”. O livro é extremamente interessante e me fez refletir o quanto a histeria coletiva faz com que o raciocínio seja substituído pelos slogans e pela mera propaganda. O que sugeriu um link com o comportamento irracional que é percebido nas redes sociais brasileiras. Ao menos, em parte.
Para ter efeito, este tipo de estímulo à histeria precisa operar a política no campo do imaginário. O imaginário, lembremos, é a dimensão não organizada que procura criar alguma lógica na associação de imagens. Portanto, distinto da leitura racional do mundo. No imaginário, consciente e inconsciente interagem num esforço de interpretação. Não há uma ordem necessária nesse tipo de interpretação, mas sensações que indicam uma intuição ou flash por onde uma luz passa a iluminar a leitura sobre um acontecimento. Talvez, valha a pena lembrar o alerta de Freud sobre o inconsciente quando afirma que se trata de “uma terra estrangeira interior”. Portanto, uma sociedade que é afetada por estímulos que atuam no campo do imaginário é uma sociedade excitada, pouco reflexiva, constantemente alerta e à beira do esgotamento. Daí o conteúdo tóxico, contaminado, virulento.
Nessa dimensão, como sugere Carlos Cardoso Aveline ao resenhar o livro de McGrath, “os bodes expiatórios, políticos ou religiosos, são necessários para que o sentimento coletivo de frustração seja projetado sobre algum objeto externo, o que produzirá uma falsa sensação de alívio.”
Ingressamos, assim, no turbilhão da satisfação sadomasoquista: o sofrimento que tantos incautos sentem leva, pelo estímulo externo que opera sobre seu imaginário, ao ataque para que outros também sofram. Uma espécie de autossabotagem ao contrário. Na autossabotagem, aquele que sofreu um trauma profundo pode alimentar a mesma cena que o traumatizou com outros, sem mesmo perceber. É o caso do pai que foi abandonado por seu próprio pai aos 10 anos e começa a pensar em abandonar a família que constituiu na medida em que seu filho se aproxima da fatídica idade dos 10 anos. Um movimento circular de sofrimento sadomasoquista que projeta o sofrimento passado como culpa ou catarse, fazendo a roda do seu sofrimento se expandir e atingir os que estão ao seu redor.
Numa situação emocionalmente contaminada como essa, não há diálogo ou moderação possível. Foge do autocontrole ou do controle das pulsões. O que leva à descarga de emoções confusas que se projeta contra um Outro que se apresenta racionalmente à sua frente e pede reflexão. Justamente porque a reflexão não está no seu campo de sintonia com o mundo e com seu sofrimento interno, com seu trauma que procura expiar.
Portanto, numa situação como a que estou descrevendo sob a luz de William McGrath, a intolerância dos grupos autorreferentes (tribos ou bolhas sociais) à crítica ou autorreflexão impede uma leitura objetiva e racional da realidade.
Émile Durkheim já havia nos explicado como funciona a lógica dos pequenos grupos. Forja-se uma aliança emocional tão potente que seus membros abandonam sua consciência individual (de racionalidade ou autonomia) para se entregarem aos valores coletivos. Durkheim sugeria que, nessa situação, a consciência coletiva engloba e domestica a consciência individual: cada um é o todo. Refletir sobre o todo significa trair a tribo e, por esse motivo é que é preciso criar jargões e vestimentas – além de rituais – de reconhecimento e identidade grupal. Na solidariedade mecânica, o nome que Durkheim dá para esse fenômeno de alta coesão corporativa, cria-se um ambiente de previsibilidade em relação ao comportamento dos membros do grupo. Basta olhar o visual de um punk para sabermos que seu comportamento seguirá um certo roteiro. E assim por diante, com toda lógica tribal. Um passo para a psicose, onde a leitura da realidade objetiva é inviabilizada.
Carlos Aveline sugere que “líderes eficientes estimulam o respeito mútuo. Eles dão o exemplo da simplicidade voluntária, da atitude construtiva, da boa vontade e da cooperação.” Pois bem, ciristas, identitários e bolsonaristas têm em suas referências de liderança personagens que destilam discurso beligerante. São líderes que se fazem pela negação do Outro, pelo combate ao Outro, pela autoafirmação a partir do Outro. Aqui, portanto, temos uma explicação provável. Mas, e no caso dos lulistas? De onde viria tanta agitação mental e intolerância à reflexão e à crítica como se verifica com certa frequência nas redes sociais?
Se não são todos, ao menos, uma parte relevante dos lulistas que se expressa nas redes sociais parece tomada por uma angústia com o passado recente (do impeachment de Dilma à prisão de Lula) que os desautoriza à luta política. Numa situação de sofrimento social – como uma guerra ou uma pandemia -, a capacidade para se recompor e atuar racionalmente sobre a catástrofe é essencial para a superação da crise. Mas, o que teria feito tantos seguidores e apoiadores de Lula não conseguirem se recompor emocionalmente para enfrentar a jornada seguinte? Sugiro que seja algo entre a bonança e o trauma.
Com o lulismo, a base social do Partido dos Trabalhadores se ampliou. Pela primeira vez, os grotões do país compreenderam o que o discurso petista – ou lulista – projetava como um outro país. Muitos se identificaram e se alinharam com Lula. Como líder e como sinal de uma nova Era. De 2003 a 2015, ocorreram percalços nas gestões lulistas, mas o saldo positivo sempre foi repisado por lideranças petistas. O estímulo à construção de um imaginário de paz social e aproximação de um mundo idealizado foi constante a partir de 2006. Esta descarga emocional de satisfação e tranquilidade se aproximou de uma leitura apolítica da história. Como se a história das disputas tivesse sido suspensa naquele período. “Toda oposição será perdoada” (desde que liderada pelo lulismo) caberia perfeitamente como slogan daquele período.
A partir daí, essa visão idílica do Brasil desarmou corações e mentes. Não havia mais lugar para a malícia e o confronto nos embates políticos. De tal maneira que, a partir de 2013, o castelo começou a desmoronar. Não o castelo da política real, mas o castelo montado no imaginário de parte dos lulistas. A “Pax Social” deu lugar à virulência e violência dos empresários paulistas, da direita jovem (o que fez tantos lulistas se perguntarem que juventude era essa) e, mais adiante, ao tsunami político da extrema-direita.
Percebo em vários comentários nas redes sociais ou lives sobre política como essa parcela lulista anseia pela volta dos anos dourados. Ficam assustados em saber que mais de 10% dos brasileiros destilam valores de extrema-direita. Acham muito que Bolsonaro tenha apoio de 25% dos conterrâneos. Nem mesmo percebem que este é um percentual inferior ao total dos alemães de extrema-direita, aos franceses de extrema-direita e ao que acontece em tantos outros países que, a despeito desse contingente de fanáticos, os valores democráticos e até de esquerda avançam, se recompõem e se impõem gradativamente. Não percebem que essa é a realidade com a qual devem operar. Caso contrário, a espera da “volta ao futuro” os transformará em lulistas passivos frente ao mundo real.
Assim, lulistas parecem traumatizados pelo fim do Paraíso que parecia instalado no Brasil. Algo desmoronou na lógica irracional de interpretação do mundo e de localização dos desafios políticos. A história retornou e, com ela, os embates e contradições ferozes das forças políticas antagônicas. Agora, a morte de César, as guerras lideradas por Napoleão e os escritos do cônsul Maquiavel fazem mais sentido e se alinham com a disputa política no nosso país. Mas, para alguns, é doído demais perceber que o mundo não se faz somente por um lado da moeda política. Ela se faz pelo conflito. E pelo confronto.
Esse aprendizado já era para ter se cristalizado na mente de todos os lulistas. Mas, infelizmente, parte deles continua atônita e revoltada. E se joga numa tarefa inglória: não se reorganiza contra os inimigos, mas joga todas suas forças contra quem os instiga a refletir e criticar o mundo.
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