Foto: Daniel Lombroso / The Atlantic. Fonte: https://www.theatlantic.com/politics/archive/2016/11/richard-spencer-speech-npi/508379/?utm_source=atlfbcomment

Historicamente a imprensa tem um papel fundamental nas sociedades ao escolher, separar, resumir e explicar os acontecimentos mais importantes à maioria da população. Somos historiadores do cotidiano e nossa obrigação principal é, ou deveria ser, fazer a Comunicação Social, ou seja, mostrar o que acontece nos vários setores da sociedade: as demandas, as vitórias, as ideias… Mais que isso, temos a obrigação de analisar os movimentos políticos e sociais e investigar para desnudar os interesses dos vários grupos que se chocam. Mas pelo que se vê pelo mundo hoje, estamos fracassando nessa missão. Tanto o jornalismo hegemônico como as mídias alternativas temos urgentemente de rever nossa atuação, nossos métodos, nossa empáfia. E especialmente no que tange ao jornalismo político, pois o mundo segue célere (também devido à nossa ação ou inação) para uma nova onda de fascismo que pode nos varrer a todos.

Ao lado dos "carecas", grupo que defende a supremacia branca no Brasil, manifestante pela intervenção militar ostenta o logotipo do DOPS na camiseta - São Paulo 15/03/2014 - foto: www.mediaquatro.com
Ao lado dos “carecas”, grupo que defende a supremacia branca no Brasil, manifestante pela intervenção militar ostenta na camiseta o logotipo do DOPS, órgão da repressão a esquerdistas e jornalistas durante a ditadura civil-militar de 1964 a 1985 – São Paulo 15/03/2014 – foto: www.mediaquatro.com

O exemplo mais emblemático disso é a recente eleição nos Estados Unidos, onde apesar da maior parte da imprensa ser crítica à sua candidatura, mais uma vez (como aconteceu na disputa entre Al Gore e Bush Jr em 2000) uma minoria dos votos populares elegeu um presidente pelo Colégio Eleitoral. A campanha do magnata do mercado imobiliário e apresentador de TV Donald Trump já demonstrava que ele poderia contar com os votos dos racistas, homofóbicos e xenófobos. Mas após as eleições, grupos ainda mais radicais como a Ku Klux Klan e os Supremacistas Brancos têm saído às ruas sem qualquer pudor de expor seus perigosos preconceitos. É o caso do Alt-Right, braço do National Policy Institute. No vídeo abaixo, divulgado pelo site The Atlantic, o líder do movimento, Richard B. Spencer, abre seu discurso para mais de 200 participantes da conferência anual da entidade, no último dia 19 de novembro, com a saudação nazista: “Hail Trump, hail our people, hail victory!” (“Salve Trump, salve nosso povo, salve a vitória!”).

https://www.facebook.com/TheAtlantic/videos/10154823525748487/

Outros trechos do discurso, lido e não de improviso, disponíveis no vídeo deixam claro que não se trata de qualquer descuido. Ele sabe exatamente o que está fazendo. Assim como os brasileiros que foram às ruas com camisas da seleção brasileira pedir “nosso país de volta”, ele afirma categoricamente: “America was until this past generation a white country designed for ourselves and our posterity. It is our creation, it is our inheritance, and it belongs to us.” (“Os Estados Unidos eram até a última geração um país branco desenvolvido para nós e nossos descendentes. É nossa criação, nossa herança e pertence a nós”).  O racismo fica evidente quando ele diz que “To be a white is to be a striver, a crusader, an explorer, and a conqueror. We build, we produce, we go upward and we recognize the central lie of the American race relations. We don’t exploit other groups, we don’t gain anything from their presence. They need us not the other way around”. (“Ser branco é ser um lutador, um cruzado, um explorador e um conquistador. Construímos, produzimos, vamos para cima e reconhecemos a mentira central das relações raciais americanas. Nós não exploramos outros grupos, não ganhamos nada com sua presença aqui. Eles precisam de nós e não o contrário”.)

Assim como nos EUA, senhores brancos exigem "seu"país de volta. Marcha com Deus e a Família em 2014 tinha todos os elementos das manifestações pelo golpe em 2015 e 2016 - - São Paulo 15/03/2014 - foto: www.mediaquatro.com
Assim como nos EUA, senhores brancos exigem “seu”país de volta. Marcha com Deus e a Família em 2014 tinha todos os elementos das manifestações pelo golpe em 2015 e 2016 – São Paulo 15/03/2014 – foto: www.mediaquatro.com

Quando fala da imprensa, Spencer se aproxima ainda mais do nazismo, usando duas expressões em alemão: ‘Lugenpresse’ (imprensa mentirosa, usada nos anos 1940 pra se referir à mídia crítica à ascensão do Nacional Socialismo) e ‘Golem’ (ser mítico da cabala judaica que ganha vida a partir de coisas inanimadas). “The mainstream media, or perhaps we should refer to them in the original German ‘Lugenpresse’ […] It’s not just they’re leftists and cucks. It’s not just many are genuinely stupid. Indeed, one wonders if these people are people at all, or instead soulless ‘Golem’ animated by some dark power to repeat whatever talking point John Oliver stated the night before.” (“A grande mídia, ou talvez devêssemos nos referir a eles no original alemão ‘Lugenpresse’ […] Não são apenas esquerdistas e idiotas. Não se trata de muitos serem apenas genuinamente estúpidos. De fato, deveríamos nos perguntar se essas pessoas são realmente pessoas, ou, em vez disso, algum ser sem alma, um ‘Golem’ animado por algum poder negro para repetir qualquer opinião que John Oliver –apresentador do programa sobre jornalismo Last Week Tonight da HBO – tenha dito na noite anterior.”).

O símbolo do sigma em preto no círculo branco sobre o fundo vermelho era usado pelos integralistas de Plínio Salgado, versão brasileira do nazismo - São Paulo 15/03/2014 - foto: www.mediaquatro.com
O símbolo do sigma em preto no círculo branco sobre o fundo vermelho era usado pelos integralistas de Plínio Salgado, versão brasileira do nazismo – São Paulo 15/03/2014 – foto: www.mediaquatro.com

E ele continua, demonstrando claramente nossa culpa nesse estado de coisas: “The press has cleary decided to double down and wage war against the legitimacy of Trump and the continued existence of White America. But they are really opening the door for us.” (“A imprensa claramente decidiu nos abater com uma guerra contra a legitimidade de Trump e a contínua existência da América Branca. Mas na verdade o que fizeram foi abrir as portas para nós.”). Veja a matéria completa em inglês sobre o episódio em https://www.theatlantic.com/politics/archive/2016/11/richard-spencer-speech-npi/508379/?utm_source=atlfbcomment

Aqui no Brasil, a mídia hegemônica nacional ou apoiou abertamente ou não conseguiu desconstruir os falsos discursos moralistas e de eficiência empresarial que levaram (sem uma contrapartida efetiva da mídia independente) a eleições como a de Curitiba num sujeito que vomita na presença de pobres, no Rio de Janeiro de um pastor racista e homofóbico e em São Paulo de um ex-presidente da Embratur expulso no governo Sarney por corrupção (!) cuja esposa acha que o problema da pobreza é ser obrigada a contratar funcionárias desnutridas que não sabem fazer o serviço ou já vêm com “vícios” de outras patroas.

Cerca de 200 pessoas se concentram na Plaza de Oriente de Madrid para recordar e homenagear o ditador Francisco Franco quando se completam 41 anos de sua morte. Foto: EFE/Zipi - Fonte: http://www.publico.es/politica/activista-lagarder-agredido-200-nostalgicos.html
Cerca de 200 pessoas se concentram na Plaza de Oriente de Madrid para recordar e homenagear o ditador Francisco Franco quando se completam 41 anos de sua morte. Foto: EFE/Zipi – Fonte: http://www.publico.es/politica/activista-lagarder-agredido-200-nostalgicos.html

Para mostrar que o movimento não se restringe aos Estados Unidos ou o Brasil, vejam o a matéria em espanhol do jornal Público sobre as manifestações pela volta do regime franquista na Espanha no último domingo 20 de novembro (http://www.publico.es/politica/activista-lagarder-agredido-200-nostalgicos.html). Apesar de um ativista sem teto ter sido agredido, não há notícia de nenhum manifestante detido e processado, da mesma forma como ninguém foi preso pela invasão do plenário o Congresso brasileiro na semana passada por saudosos da ditadura de 1964 (https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/11/16/Grupo-pr%C3%B3-interven%C3%A7%C3%A3o-militar-invadiu-a-C%C3%A2mara.-Como-reagiu-quem-foi-eleito-para-estar-ali). Os partidários da “intervenção militar constitucional”, aliás, foram os verdadeiros ideários das manifestações pelo impeachment da presidenta Dilma Roussef, como pode ser facilmente comprovado em nossa matéria cobrindo a reedição da Marcha Com Deus e Família em 15 de março de 2014, portanto exatamente um ano antes da primeira grande manifestação em São Paulo. As fotos brasileiras que ilustram esse artigo vêm dela, disponível em https://brasilmais40.wordpress.com/2014/03/26/a-volta-dos-que-nao-foram/.

Urge mudarmos a nós e a nossa imprensa para voltarmos a fazer do jornalismo um bem público para o bom desenvolvimento cultural, social, intelectual e econômico de TODAS as pessoas, especialmente as mais necessitadas.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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