Martha RaquelBrasil de Fato | São Paulo (SP) GREVE PELA VIDA
Isadora Jordão* é professora da rede municipal de São Paulo há 8 anos e neste mês recebeu apenas R$ 11 de salário por causa da greve pela vida
. “Eu recebi R$ 11 de salário. Onze reais! Meu salário está praticamente inteiro nos descontos, né?”, conta a professora. Ao receber o holerite, ela viu que todos os dias entre 10 de fevereiro e 11 de março foram descontados, uma prática que não acontecia no estado há décadas.
“Quando você faz uma greve você sabe que ameaçam cortar o salário, mas isso não ocorre na prefeitura de São Paulo há pelo menos 30 anos, sempre há negociações com o sindicato, com a categoria. Mas o governo municipal está cada dia mais agressivo com os profissionais da educação depois que o [Fernando] Padula virou secretário [de educação]”, explica a professora.
Ela faz parte dos 55% dos profissionais da educação que aderiram à greve após o retorno das aulas presenciais. A docente teve todos os dias de trabalho descontados após aderir a campanha pela vida.
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Até o momento, 344 escolas já tiveram surtos de covid-19 desde o início das aulas presenciais. Foram 900 contaminados entre profissionais da educação e alunos.
Sirlei, Rosane, Silvia, Elisabeth, Daniele, Ari, Eliana, Yara e tantos outros. Até o final do mês de março, 45 trabalhadores faleceram depois de se contaminar no ambiente de trabalho. Alunos também foram atingidos pelo vírus, como é o caso de Gabriel, um garotinho de 8 anos que faleceu em março.
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A volta forçada às aulas presenciais
Depois de três tentativas de retornar com as aulas presenciais – respondendo ao lobby das escolas particulares, no dia 15 de fevereiro, o regime de aulas presenciais voltou na capital paulista.
No pior momento da pandemia vivido até então no Brasil, a média diária de mortes registradas em decorrência do coronavírus e da nova cepa brasileira era de 1.177 óbitos.
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Antes disso, em janeiro, a prefeitura municipal chegou a contratar 2,7 mil professores e auxiliares técnicos para tentar reabrir as escolas, mas a medida não se sustentou.
A partir da metade de fevereiro, as aulas presenciais passaram a ser facultativas para os alunos e obrigatória para os trabalhadores da rede.
São quase 80 mil funcionários impactados pela medida, sendo eles 4.077 gestores, 58.803 professores, 16.140 quadros de apoio e 822 classificados como “outros”.
“Não houve muita adesão de alunos no retorno às aulas presenciais porque boa parte das famílias escolheram não enviar os estudantes para a escola por uma questão de segurança mesmo”, explica a professora.
Assim como os professores, auxiliares, supervisores, diretores, quadros de apoio e coordenadores grevistas, a principal preocupação dos pais é a falta de biossegurança ao colocar estudantes em um ambiente coletivo fechado, com péssima circulação de ar, por muitas horas.
Segundo a prefeitura de São Paulo, apenas professores com mais de 60 anos ou com comorbidades podem trabalhar em regime remoto. Mas há um agravante: o governo municipal, ignorando todas as recomendações dos serviços de saúde, editou a lista de comorbidades.
Estão permitidos manter o trabalho on-line somente professores que tenham IMC 40, ou seja, obesidade mórbida; hipertensão persistente e que a pessoa esteja tomando três medicamentos; e asma nível 4, por exemplo.
Dos 80 mil profissionais, 20 mil estão habilitados para a atividade on-line. Todos os demais profissionais, mesmo os que têm problemas de saúde não listados pelo governo municipal, estão proibidos de trabalhar de forma remota.
“A Prefeitura nunca teve um protocolo oficial, publicado em Diário Oficial, nunca teve um parecer técnico da Secretaria Municipal de Saúde que aponta a possibilidade de retorno às aulas, né?” explica Maciel Nascimento, secretário de políticas para os trabalhadores da educação do Sindicato dos Servidores Municipais de São Paulo (Sindsep) e integrante do Sindicato dos Trabalhadores Públicos e Autarquias do município de São Paulo.
“Então, as nossas denúncias e a nossa greve, a partir de 10 de fevereiro, deram conta de apontar quais eram as contradições que a prefeitura impunha aos profissionais ao forçar esse retorno”, continua.
A professora Isa explica que os professores não querem deixar de trabalhar, mas que estão sendo proibidos de exercer sua função com segurança.
“Os professores não se recusaram a dar aula on-line, mas é uma coisa que você não pode fazer sem autorização. Nós precisamos do aval da Secretaria Municipal de Educação, então não é uma coisa que podemos decidir”, conta a educadora.
Isadora conta que em sua escola, alunos do fundamental I não tiveram aulas presenciais por que quase a totalidade dos professores aderiram à greve. Já em outros ciclos, a adesão dos estudantes foi tão pequena, que em toda a escola, compareciam diariamente menos de 20 alunos para as aulas presenciais.
E, ainda assim, pouquíssimos estudantes no prédio, houveram casos de contaminação por coronavírus nas três semanas em que a escola ficou aberta em 2021.
Profissionais tiveram que escolher entre morrer de covid ou de fome
O secretário municipal de educação, Fernando Padula, atuou no governo estadual antes de assumir o cargo na capital paulista. A educadora lembra que a trajetória do secretário no Estado de São Paulo foi marcada por diversas irregularidades como o não pagamento do piso para os professores e o não cumprimento das sentenças perdidas do governo estadual.
“Foi um baque muito grande ver o desconto salarial. Eu recebi R$ 11, mas teve gente que não recebeu nada. Nem o holerite conseguiu pegar ainda porque não liberam quando está zerado”, conta a professora Isa.
“As pessoas ficaram derrubadas, desoladas, beirando uma situação de depressão por conta do desconto e de todo o constrangimento de ter que pedir ajuda para familiares e amigos para comprar comida, pagar o aluguel e não atrasar as contas”, explica.
Segundo a educadora isso causa revolta e tristeza na categoria, que segue mobilizada.
Geladeira vazia na casa de uma professora da rede municipal de São Paulo. Ela teve o salário zerado no último mês / Arquivo pessoal
“Muitos diretores e gestores que não apontaram as faltas considerando ser injusto já que a greve é pela vida, e a nossa greve não é apenas em defesa dos trabalhadores, mas em defesa de toda a população”, lembra o sindicalista.
Das 1.434 escolas municipais, 40 gestores e diretores decidiram enviar as faltas dos professores à Secretaria Municipal de Ensino da capital paulista.
“A prefeitura cortou o salário ao mesmo tempo que aumentou o custo de vida, no momento que as pessoas vão ter dificuldade de alimentar sua família. Então em tempos de pandemia a prefeitura de São Paulo promove a possibilidade de profissionais de educação não terem o que comer nesse período”, pontua Nascimento.
Desde 1989 é assegurado por lei o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender. De acordo com o artigo segundo, é legítima a suspensão coletiva, temporária e pacífica, total ou parcial, de prestação pessoal de serviços a empregador.
A lei, inclusive, assegura aos trabalhadores o direito à percepção dos salários durante o período de paralisação.
“A greve tem uma legislação específica, né? Não é uma falta normal a ser descontada, tanto que ninguém pode faltar mais de 30 dias no trabalho sem que seja considerado abandono. Greve não entra nisso, faz parte de outra legislação”, lembra a professora.
A greve ajudou a conter o número de mortos na cidade
A greve começou antes da escola ser aberta aos alunos, no dia 10 de fevereiro, quando os professores foram forçados a atuar presencialmente.
A escola passou a oferecer as aulas presenciais no dia 15 de fevereiro e manteve até o dia 11 de março, quando elas foram suspensas por conta dos casos de covid. Nos dias 15 e 16 de março as instituições ficaram abertas apenas para atendimento, oferta de alimentação e entrega de material.
No dia 17 de março começou o recesso de julho antecipado e de 26 de março a 2 de abril, as aulas não ocorrerão por conta dos feriados, também antecipados.
Um decreto publicado na última quinta-feira (1), pela prefeitura de São Paulo, determina a volta às aulas na cidade a partir do dia 12 de abril, desde que a fase emergencial não seja prorrogada no estado.
A publicação também especifica que funcionários de EMEFs, EMEFMs e EMEBSs serão testados dia 5 e funcionários de EMEIs, CEUs, CIEJAs e CMCT no próximo dia 6.
A testagem acaba se tornando um protocolo ineficiente, uma vez que com a locomoção dos trabalhadores da educação até os centros de trabalho, os coloca em risco de contaminação diariamente.
“O secretário municipal de educação publicou fotos com uma ou duas crianças almoçando na escola para falar sobre a oferta de alimentação. Mas isso não justifica a exposição e o trânsito de funcionários para atender duas crianças”, explica a professora.
Para ela, a prefeitura de São Paulo deveria garantir de outras formas que as crianças tivessem direito à alimentação de qualidade.
“O governo deveria garantir uma cesta básica um auxílio emergencial para as famílias, ao invés de forçar uma circulação para colocar em funcionamento uma escola que atende pouquíssimas crianças. Hoje as escolas não garantem a segurança alimentar, porque a realidade não é o prato cheio de alimentos variados que aparece na foto nas redes do secretário, muitas vezes é só uma bolacha e suco”, ilustra a educadora.
“O secretário municipal de educação publicou fotos com uma ou duas crianças almoçando na escola para falar sobre a oferta de alimentação, mas isso não justifica a exposição e o trânsito de funcionários para atender poucas crianças”, afirma a docente / Secretaria Municipal de Educação de São Paulo
Mais de 500 escolas ficaram sem profissionais de limpeza
Por problemas de contrato com a empresa terceirizada, mais de 580 escolas ficaram sem profissionais de limpeza no período de retorno das aulas.
Por este motivo houve um escalonamento e algumas retornaram às aulas dia 15, outras 22 de fevereiro e outras no dia 01 de março. Mas ainda hoje há escolas que não tem profissionais ou que estão com o quadro reduzido.
Considerando a baixa adesão de estudantes, a empresa terceirizada está escalando apenas uma parte dos funcionários.
“Isso é sinal da incompetência do governo municipal em garantir que neste período de pandemia as escolas tenham um sistema de limpeza eficiente”, pontua o secretário de políticas para os trabalhadores.
“Só não temos um maior número de mortos na cidade por que a greve impediu que trabalhadores da educação andassem pela cidade. Nós estamos falando de um universo de 79 mil profissionais”, lembra.
Quase todas as salas de aula da rede municipal de São Paulo contam com janelas basculantes, ou seja, janelas em que se abre apenas uma fresta. Muitas emperram, não abrem muito bem ou tem grades, o que prejudica a circulação de ar.
“Pelo protocolo [de biossegurança] não é possível utilizar o ventilador porque ele pode espalhar mais ainda os vírus que eventualmente estejam no ar. Se alguém estiver portando o vírus, mesmo sem os sintomas, isso pode gerar um surto. Então a questão da ventilação é uma questão principal, né? E as salas de aulas normalmente não tem uma ventilação adequada”, explica Isadora, que há 8 anos vive essa realidade.
Além disso há a convivência em espaços de uso comum de todas as turmas como pátios, refeitório e banheiros, que deveriam ser higienizados com muita frequência.
Objetos, brinquedos e todas as superfícies tocadas pelos os estudantes dentro das salas de aula também deveriam passar por limpeza regular.
As equipes minúsculas de limpeza não estão dando conta de limpar regularmente todos os corrimãos, carteiras, mesas, banheiros, torneiras. A professora explica que as crianças não têm o mesmo entendimento da pandemia que os adultos, então manter os protocolos de segurança é muito difícil.
“Ficamos quatro ou cinco horas com eles dentro de uma sala de aula. Já tivemos muitos surtos dentro de salas de aula. E surto significa que não foi um caso, foram alguns casos, né? Então, uma escola com dois, três, quatro, cinco casos, foi um surto”, lembra a educadora.
Lobby de volta às aulas dos donos de escolas privadas
Tanto o secretário de políticas para os trabalhadores da educação do Sindicato dos Servidores Municipais de São Paulo (Sindsep) quanto a professora pontuam que o retorno às aulas presenciais se deu por uma pressão do “Movimento Escolas Abertas“.
Segundo o sindicalista, o movimento é encabeçado por proprietários de escolas privadas que lutam pela volta às aulas presenciais na rede pública para que a rede privada também possa atuar presencialmente.
“No sábado (27) houve uma manobra na cidade de São Paulo, a educação passou a ser serviço essencial para que ele [o secretário de educação] tenha justificativa para manter as escolas abertas atendendo ao pleito das instituições privadas. O mercantilismo da educação precisa das escolas abertas”, exemplifica Nascimento.
A professora pontua que o movimento não tem base. “É uma construção financiada pelas escolas pagas que busca atender apenas os interesses das instituições particulares”, explica.
“O próprio secretário da educação participou de lives do movimento”, lembra.
Os cinco sindicatos que encabeçam a greve – APROFEM, SEDIN, SINDSEP, SINESP e SINPEEM – seguem reivindicando o pagamento dos salários e a suspensão das aulas presenciais.
“A greve é pela vida. Protege os trabalhadores, os estudantes e também suas famílias. Protege, também, trabalhadores de outras áreas, já que retira das ruas 80 mil pessoas diariamente”, finaliza Nascimento.
Procuradas pelo Brasil de Fato, a Prefeitura de São Paulo e a Secretaria Municipal de Educação não se manifestaram a respeito.
*Isadora é um nome fictício
Edição: Rebeca Cavalcante