A greve geral de 2017 e o dia seguinte da esquerda

Santo André, ABC Paulista, 2001. Wanderley, um aluno gaúcho de 40 e poucos anos, matriculado na 5º série do Ensino Fundamental I, na modalidade Educação de Jovens e Adultos, comissão de fábrica da Lazzuril/SBC, contou-nos que um companheiro de fábrica estava afastado por meses em razão de uma infecção na pele da mão e do pênis porque o supervisor o obrigava a urinar no chão da fábrica enquanto ele manuseava a máquina. Motivo? Ganhar tempo na produção e evitar que o trabalhador “ficasse enrolando no banheiro fora do horário do almoço”. O universo do trabalho no Brasil é tão perverso e cruel que histórias como essa soam anacrônicas e inverossímeis quando se considera que ela ocorreu em 2001, no entanto, infelizmente, vários operários da Lazzuril confirmaram a veracidade do relato.

O fato é que a partir dessa história, Wanderley mostrou aos colegas sindicalizados que a lógica das greves reside em algo que o operariado vive na pele, literalmente, há séculos: “tentar humanizar uma guerra perdida”. Porque em uma sociedade capitalista, senhoras e senhores, só os capitalistas são vitoriosos, de maneira que para a classe trabalhadora não há alternativa possível que não seja se organizar em sindicatos e exercer o legítimo direito à greve para que o operário não seja super explorado e impedido de ir ao banheiro quando precisar, não trabalhe mais que oito horas; para a mulher grávida não ter que trabalhar em condições insalubres e ter o direito garantido por lei de estar com seu filho depois do nascimento, para os trabalhadores terem férias remuneradas, décimo terceiro salário, assistência médica, escolas para seus filhos, condição de ter um lar e se alimentar – até para continuar vivo e poder ser um operário.

Reinvindicações que estão longe de configurar, em qualquer país do planeta Terra, a implantação de um regime comunista de governo, como afirma a grande imprensa no Brasil. Aliás, se considerarmos as lutas do operariado inglês a partir da segunda metade do século XVIII e durante o século XIX inteiro, o surgimento dos sindicatos europeus, as premissas do Fordismo nos EUA, as lutas dos trabalhadores sob o regime da escravidão, a greve dos escravos do Visconde de Mauá que pararam o serviço da fábrica da Ponta D´Areia, em 1857, a greve dos tipógrafos no Rio de Janeiro, em 1858, a nossa grande greve geral em 1917 e as greves do sindicalismo do ABC paulista, a partir do final dos anos 1970, perceberemos que a luta da classe trabalhadora do tempo ido acabou nos garantindo direitos trabalhistas ao tempo em que ajustou as engrenagens de reprodução do próprio capitalismo.

No entanto, aqui no Brasil, a nossa classe dominante, porque foi forjada no escravismo e agora também é rentista, parece não entender o que é capitalismo: arrancaram as condições mínimas de existência do trabalhador para que os patrões pudessem continuar extraindo valor de sua produção, que coisa espantosa, senhoras e senhores. Os nossos direitos trabalhistas que pensávamos relativamente consolidados, sobretudo na última década, com o fortalecimento do nosso Estado de Bem Estar Social e com o país conquistando índices econômicos e sociais nunca antes alcançados, foram brutalmente golpeados na última terça-feira de abril de 2017, quando 296 representantes das patronais votaram a favor da “Reforma trabalhista” que acaba com tudo que o movimento operário brasileiro conquistou com lágrimas, suor e muito sangue dos milhões de corpos e almas que a elite desse país escravizou e super explorou por séculos. Justamente por isso, esse golpe duro com a aprovação da reforma trabalhista acabou servindo de empuxo para a população protestar.

Com a votação transmitida em rede nacional, na última terça-feira, a população percebeu que parte da classe política desse país acusada com provas abundantes de corrupção ativa, junto com um setor do judiciário e toda grande imprensa precisou criar um crime de responsabilidade fiscal para efetivar o impeachment da Presidenta Dilma e, assim, implantar um programa de governo que foi derrotado nas eleições de 2014: reforma trabalhista, terceirização das atividades-fim, fim da CLT, fim do imposto sindical, congelamento por vinte anos dos investimentos estatais na educação e saúde, desmonte dos programas sociais e de infraestrutura, privatizações diversas. Não à toa, três dias depois, sexta-feira, 28 de abril de 2017, 48 milhões brasileiros e brasileiras foram às ruas contra as reformas desse governo que golpeou a Democracia brasileira.

Apesar de a grande imprensa criminalizar a maior greve da história desse país e alguns estados, como Rio de Janeiro, cuja paisagem foi enevoada pelas bombas de gás lacrimogênio, São Paulo, onde estão presos 3 militantes do MTST, e Goiânia, onde um rapaz foi agredido com um cassetete e está na UTI, reprimirem com brutal violência policial o movimento, a greve geral de 28/04/2017 foi uma grande vitória nossa, da população. Primeiro porque 48 milhões de pessoas foram às ruas, do Amapá aos Pampas, passando por milhares de pequenas cidades do interior e do litoral do país, contra as políticas de austeridade de um governo sem legitimidade. Segundo porque esse número comprova o que alguns setores da esquerda já alertavam desde 2013: a centralidade do trabalho e do trabalhismo no processo de unificar politicamente os partidos do campo progressista (177 deputados votaram contra a reforma trabalhista), as centrais sindicais, movimentos sociais e boa parte da população – incluindo alguns setores que foram enganados pela grande imprensa e não perceberam as reais razões do impeachment contra a Presidenta Dilma. Terceiro porque a construção de consenso político na mais importante greve geral do país, desde o final dos anos oitenta, pode vir a ser o ponto de partida para o processo de reversão das políticas de austeridade que retiram os nossos direitos diariamente há um ano.

Eis a maior vitória da greve geral de 28/04/2017: a população mostrou que está disposta a lutar contra a retirada de seus direitos por um governo ilegítimo e corrupto, que não foi eleito democraticamente. Mas a maior vitória é também o nosso maior desafio: ao longo desse último ano, faz parte da estratégia do golpismo o ataque diário e constante aos direitos da população e à democracia, desmobilizando a população de qualquer tentativa de reação. A imprensa tem anunciado que esse governo tem pressa em votar, nas próximas semanas, a reforma da previdência e a reforma política, que em razão do princípio da anualidade deve ser aprovada pelo senado até setembro de 2017, para que as regras vigorem nas eleições de 2018. Para além da perda dos direitos previdenciários, como perdemos também qualquer capacidade de previsibilidade depois do golpe parlamentar, o que pode estar em causa na votação da reforma política, senhoras e senhores, é a garantia de eleições diretas em 2018. A principal razão e mais óbvia é que essa greve geral deixou claro que senadores e deputados que aprovaram a política de austeridade adotada há um ano pelo golpismo sabem que não serão reeleitos. O governo Temer e sua base aliada têm 96% de rejeição. Considerando a margem de erro da pesquisa, provavelmente só as organizações Globo, a Folha de São Paulo, o Estadão e aqueles 296 deputados aprovam esse governo.

Além disso, há tempos que os próceres do partido mais denunciado e pouquíssimo investigado na operação lava-jato, o PSDB, tem militado na causa do parlamentarismo misto: um Presidente praticamente figurativo coexistindo com um Primeiro-Ministro forte (eleito pelo Congresso Nacional e indicado pelo Presidente), o que acaba fortalecendo o Congresso Nacional à medida que ele pode destituir a qualquer tempo o Primeiro-Ministro sob pretexto até de “incompetência administrativa” caso ele/ela seja um obstáculo à balconização do Estado pelos interesses privados dos congressistas. Considerando o espetáculo vergonhoso da votação pela admissibilidade do Impeachment da Presidenta Dilma, em 17/04/2016, e as inúmeras denúncias de corrupção dos mesmos, seria interessante que os partidos de esquerdas, as centrais sindicais, os movimentos sociais e a população conseguissem avançar no consenso político em torno do trabalhismo na greve geral e convergissem em torno de um candidato comprometido com a democracia, com as eleições diretas, com a reversão das reformas do atual governo e com o desenvolvimento de uma cultura legislativa capaz de constituir maioria no congresso eleito em 2018.

Uma cultura legislativa capaz de sensibilizar a população sobre os riscos que corremos nas eleições de 2018 e sobre a necessidade imperativa de votarmos em deputadas, deputados, senadoras e senadores comprometidos com um projeto de país democrático e com os direitos da população brasileira. Precisamos urgentemente transformar o acúmulo político com a vitória da maior greve geral, em 28/04/2017, em ações que esclareçam à população sobre o nexo necessário entre o Legislativo e o Executivo para governar um país. Precisamos articular a centralidade do trabalhismo com as demandas dos “batalhadores brasileiros”, nos termos de Jessé de Souza, e as demandas da interseccionalidade para acabarmos com a miséria, o racismo, a feminização e a racialização da pobreza. A eleição para presidente é importante, mas precisamos construir as nossas campanhas para o Legislativo desde já para garantirmos um congresso múltiplo, diverso, afinado com o Executivo e realmente representativo da sociedade brasileira: trabalhadores elegendo trabalhadores, mulheres elegendo mulheres, indígenas elegendo indígenas, negros elegendo negros, LGBTs elegendo LGBTs. Nesse momento: essa é a nossa maior tarefa.

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