Governo Federal e TRF-6 despejarão cegos do seu lar?

Por Gilvander Moreira¹

Em Santa Tereza, bairro histórico de Belo Horizonte, MG, a sede única da Associação filantrópica União Auxiliadora dos Cegos de Minas Gerais está com despejo decretado por um desembargador do Tribunal Regional Federal 6ª Região (TRF6), decisão tomada em Embargos de Declaração a pedido do Governo Federal. O desembargador se agarrou em formalidades processuais e ignorou a dignidade humana e todos os direitos humanos fundamentais dos cegos que moram na Casa dos Cegos de MG, vários há mais de 45 anos, vários negros e sem parentes ou qualquer vínculo afetivo fora do ambiente em que vivem e, portanto, sem rede de apoio para além da dita entidade. O prédio da União dos Cegos de MG já foi, pela segunda vez, leiloado por 720 mil reais, sendo que, se fosse para vender, o prédio vale mais de 5 milhões de reais. Decisão chocante e estarrecedora que deixou muita gente comovida e indignada. 

Desde 1973 a Casa de Acolhida dos Cegos de MG está à Rua Mármore, 664, no bairro Santa Tereza. Foi construída com uma longuíssima campanha de solidariedade, “tijolo a tijolo”, em uma época que os cegos eram obrigados a mendigar. Esmolar na rua era o que restava para as pessoas cegas. “A Casa de Acolhida dos Cegos de MG foi construída para acolher os que não tinham nem eira e nem beira, os que, cegos/cegados, sobreviviam pedindo esmola na rua e morrendo um pouco a cada dia com tantas necessidades e sofrendo cotidianamente humilhações. Temos uma história de mais de 70 anos, desde 1955. Já acolhemos mais de mil cegos aqui na nossa sede, não só de Minas Gerais, mas de vários estados e até do estrangeiro. Aqui é nosso lar. Criamos uma Clínica Médica e vários outros projetos de acolhida dos cegos. Centenas de cegos fizeram vários cursos – braile, música, aula de violão etc. – aqui na nossa sede. Expulsar os cegos aqui desta casa, que é nosso lar, será decretar a morte de todos. Se mandar a tropa de choque para integrar na posse da nossa Sede um dos maiores empresários de Belo Horizonte, pode enviar também os caixões, pois só sairemos daqui mortos”, profetisa de cabeça erguida e muito emocionado o Jerônimo, ex-presidente da União Auxiliadora dos Cegos de MG. Ao longo de mais de sete décadas, a União Auxiliadora dos Cegos de MG tem cumprido seus principais objetivos: fornecer moradia, alimentação para os internos e externos, tratamento médico, jurídico, psicológico, de saúde, odontológico e cursos formativos a seus associados cegos, sem família em Belo Horizonte, vindas do interior para a capital, a procura de uma vida melhor e que encontraram na entidade um porto seguro, com albergaria, café da manhã, almoço, janta, cuidados médicos, oficinas de arte e etc. A sede também abriga um lindo coral de pessoas com deficiência visual.

O que levou à decretação da penhora do prédio da União Auxiliadora dos Cegos de MG, ao leilão e à consequente decisão para despejar os cegos que lá residem? Há mais de 50 anos, nas décadas de 70 e 80 do século XX, por dificuldade econômica, uma antiga diretora da União Auxiliadora dos Cegos de MG deixou de pagar tributos ao Governo Federal – INSS de funcionários que cuidavam dos cegos na Casa. O tempo foi passando e a dívida cresceu. 

Um advogado contratado para defender a União Auxiliadora dos Cegos foi irresponsável e não defendeu a Associação como deveria. Parece que tinha no contrato com ele que caso se perdesse a causa e o prédio fosse leiloado, ele teria direito a certo valor ou a algumas salas do prédio. Assim, os cegos não tiveram direito ao contraditório e a ampla defesa. O devido processo legal não aconteceu de forma justa. Quando perceberam que o advogado não os estava defendendo, o prédio já tinha sido penhorado e leiloado em 2011. Passaram a procuração para outro advogado que, por meio de vários recursos judiciais, conseguiu anular o leilão e obter revisão da decisão alegando que a Casa é lar de Cegos e, portanto, impenhorável. Mas de forma muito estranha, ao herdar o processo do TRF1, um desembargador do TRF6 reabilitou a decisão que mandou leiloar o prédio da Associação dos Cegos e agora estamos na iminência do cumprimento desta decisão brutal, absurda, inconstitucional e injusta. 

Enviamos Ofício à Macaé Evaristo, ministra do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, reivindicando que ela abra processo de negociação que exclua a decisão de leilão do prédio e o despejo dos Cegos do seu histórico lar no bairro Santa Tereza em Belo Horizonte. Esperamos que o Governo Federal – Lula, Haddad e Macaé – tenha sensibilidade humana e perdoe esta dívida de INSS de 50 anos atrás e deixe a Associação Filantrópica União Auxiliadora dos Cegos de MG em paz, melhor dizendo, que destine à Associação União Auxiliadora dos Cegos de MG recursos necessários para ela ser revitalizada para voltar a ser espaço de acolhida de centenas de cegos que clamam por apoio em BH, Região Metropolitana, MG e Brasil. 

No Ofício à Ministra dos Direitos Humanos consta: “Atente-se para a gravidade da situação em desalojar pessoas cegas do seu espaço habitual de moradia, que construíram seu projeto de vida no entorno, no qual cada um já se familiarizou com o comércio local, com os equipamentos públicos e outros espaços de convivência social. O senhor Juvenal de Jesus, por exemplo, tem 81 anos e mora na sede da União Auxiliadora dos Cegos há 44 anos. José Dias, por sua vez, conhecido como Bingo, nasceu em 1942 e também reside na sede da entidade, há 50 anos. Logo, é inimaginável cogitar o desalojamento forçado dessas pessoas nessas condições.

Como o cego Bartimeu, no evangelho de Marcos, que, ao sentir que Jesus passava subindo para Jerusalém, gritava: “Jesus, tem misericórdia de mim!” (Mc 10,47.48), os cegos do Santa Tereza estão clamando: “Tenham misericórdia de nós. Esta ameaça de despejo está tirando o nosso sono e nos adoecendo.” Indignado com os que tentavam abafar o grito do cego Bartimeu, Jesus disse: “Chamai-o!” (Mc 10,49). Feliz com a acolhida de Jesus, deixando a posição de mendicante, o cego deu um pulo e se aproximou de Jesus, desrespeitando a lei da pureza que proibia aproximar-se dos impuros. Jesus o acolhe e pergunta: “Que queres que eu te faça?” O cego não pediu esmola, mas clamou por um direito: “Eu quero a recuperação da minha visão” (Mc 10,51). Feliz da vida ao perceber a fé do cego, Jesus celebrou o resgate da visão do cego: “Vai. Tua fé te salvou” (Mc 10,52). Observe o detalhe: fé do cego e não a fé em Jesus. E o cego se tornou um discípulo de Jesus e “o seguia no caminho” (Mc 10,52). Assim, Jesus nos ensina que para sermos humanos precisamos ouvir e atender aos clamores dos injustiçados e sofredores, entre aos quais estão os cegos/cegados. 

Uma autoridade perguntou ao atual presidente da União Auxiliadora dos Cegos de MG: “Caso aconteça mesmo o despejo, vocês cegos aceitam ir para um abrigo público da prefeitura ou para um asilo ou casa de acolhida?” O atual presidente da União Auxiliadora dos Cegos de MG, Renato Leonardo Ferreira, de cabeça erguida, respondeu de forma categórica: “Jamais aceitaremos ser retirados da nossa casa, que é o nosso lar. Pedimos ao Governo Federal e à Justiça Federal que abram processo de negociação que leve à exclusão do despejo, seja perdoando a dívida como o Governo Federal tem feito nas últimas décadas com muitos usineiros, latifundiários e empresários ou encontrando outra forma de se pagar a dívida, mas sem nos retirar do nosso lar. Se se perdoa dívida de tantos ricos falidos, por que não perdoar a dívida de uma entidade filantrópica como a União Auxiliadora dos Cegos de MG?

Enfim, é triste e brutalmente injusto saber que no Brasil, nem cegos estão livres de despejo. Pelo respeito à dignidade humana seguiremos lutando até depois da vitória. Despejar um grupo de cegos de seu lar jamais aceitaremos. Clamamos pela revisão da decisão judicial do TRF6 que mandou leiloar a sede dos Cegos de MG e jogar na rua cegos que vivem lá, muitos há mais de 45 anos. Que o Governo Federal seja sensível e justo! Esse despejo não pode acontecer. 

15/10/2024

¹ Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI e Ocupações Urbanas; autor de livros e artigos. E-mail: [email protected] – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       Canal no you tube: https://www.youtube.com/@freigilvander      –     Facebook: Gilvander Moreira III

² Processo n. 0036885-69.2015.4.01.3800

³ O primeiro leilão foi cancelado judicialmente porque o novo advogado alegou no processo que a sede é casa lar dos idosos e, por isso, impenhorável.

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – DESPEJO? SEDE DA UNIÃO AUXILIADORA DOS CEGOS DE MG com decisão do TRF6 p despejo de 8 cegos. Vídeo 1

2 – “Se nos despejar daqui, nos porá no caixão.” Há 70 anos UNIÃO AUXILIADORA DOS CEGOS DE MG. Vídeo 2

3 – “DAQUI SÓ SAÍMOS NO CAIXÃO. NÃO ACEITAMOS SER DESPEJADOS. UNIÃO AUXILIADORA DE CEGOS DE MG Vídeo 3

4 – “Aqui, nosso lar. 70 anos de história. Despejo, JAMAIS!” UNIÃO AUXILIADORA DOS CEGOS DE MG. Vídeo 4

5 – “TRF6, Lula, Macaé Evaristo e empresário, pelo amor de Deus, não nos despeje. Somos cegos”. Vídeo 5

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

COMENTÁRIOS

POSTS RELACIONADOS

Eleições 2024: E agora José?

Por frei Gilvander Moreira Respire fundo. Passado o 1º turno das Eleições Municipais no Brasil dia 6 de outubro de 2024, já eleitos/as 5.417 prefeitos/as

Há futuro para a esquerda brasileira?

Por RODRIGO PEREZ OLIVEIRA, professor de História da Universidade Federal da Bahia O 1° turno das eleições municipais confirma o ciclo de derrotas que marca