GENOCÍDIO NO FUNK: MC SAPÃO E RENNAN DA PENHA

“ Favela é só o papo reto, não somos fã de canalha!”.  Ecoa o bordão de uma das canções mais conhecidas no processo de popularização do funk nas últimas décadas no país. Como ironia do destino,  o refrão na voz de MC Sapão surge como um grito dos favelados para a hipocrisia da elite que rebola até o chão com o pancadão nas suas festas de luxo, mas, na  primeira oportunidade, aperta o gatilho para os profissionais do gênero musical. Desta maneira, a branquitude se apropria dos códigos da cultura negra em seu universo privilegiado, produzindo ao mesmo tempo, o apagamento das narrativas reais destes jovens negros oriundos de favelas e periferias.

Os casos recentes da morte de MC Sapão vítima de peneumonia num hospital público de Campo Grande e criminalização  do DJ Rennan da Penha por associação ao tráfico desvelam o processo de genocídio artístico dos profissionais do Funk.

Como entender o processo do genocídio artístico  dos negros brasileiros?

A naturalização dos corpos negros associados a mecanismos de criminalização da pobreza à páginas policiais  constroem um estranhamento no imaginário social quando estes sujeitos são produtores de cultura e protagonistas das suas próprias narrativas.  O domínio do conhecimento e a perspectiva de prestígio social sempre foram associados a “espaços brancos” de poder na sociedade brasileira. Ao serem reconhecidas em espaços de produção de cultura, economia ou formulação do pensamento intelectual da sociedade, pessoas negras são frequentemente colocadas à prova de questionamentos ou reprovação social .Quando as mesmas subvertem  as estatísticas da sociedade estrutural racial e excludente, por meio de estratégias sociais , acabam por sua vez sendo criminalizadas e deslegitimadas socialmente por seu talento ou inteligência.

O genocídio do povo preto no Brasil é um processo sistêmico, construído historicamente que não se limita apenas ao extermínio da população negra ou encarceramento em massa. O simbólico também produz a morte ao ocultarmos referências e produções culturais e acadêmicas da população negra ou silenciarmos suas vozes em diferentes espaços.

 

No caso do falecimento de MC Sapão na semana passada, o que  chamou a atenção de muitas pessoas que lembram do artista como um dos ícones da cena do funk foi o triste desfecho de sua trajetória de vida. Sapão atingiu o auge nos anos 2000 e seus shows nos anos de 2005 e 2006 chegou  a ter cachês altíssimos pelo Brasil. Foi atração de grandes festas de Reveillon em hotéis de luxo do Rio de Janeiro. Começou então a dominar o nicho de shows em casamentos de pessoas famosas, sendo a principal atração do casamento Bruno Gagliasso e Giovana Ewak em 2010, hoje um dos famosos mais influentes no cenário do show business. Como a maioria esmagadora de funkeiros, começou pobre e com muitas dificuldades de se firmar no cenário fonográfico. Aos 18 anos, foi preso por associação e apologia ao tráfico e no cárcere compôs a música “ Eu sei cantar”, em que intitulava ser o memorial da sua vida, clamando por liberdade e direito de voltar a ser MC nos bailes. Sapão sempre apresentou problemas de saúde como obesidade e diabete, chegando a pesar 170 quilos. Emagreceu 50 quilos mas ainda apresentava saúde debilitada e frágil.Morreu aos 40 anos vítima de pneumonia num hospital público em Campo Grande, zona Oeste do Rio de Janeiro .  Não possuia plano de saúde e acumulava pendências financeiras da vida particular. Existiram redes de afeto e acolhimento que amparassem este artista durante este processo de complicações de saúde? Não! Mais uma vez um corpo negro é colocado a condição de “força”, influenciando relações interpessoais de cunho afetivo.Condiciona-se o homem negro a funções de trabalho e resistência física , anulando suas subjetividades. Assim Sapão mesmo debilitado, não diminuiu a rotina de shows, falecendo sem o reconhecimento midiático ou social à altura de seu feito na cena do funk.

 

Outro fato bastante discutido nas redes foi a prisão do DJ Rennan da Penha, idealizador do consagrado evento “Baile da Gaiola” por associação e apologia ao tráfico de drogas no território . Ao se entregar a polícia esta semana, gravou um vídeo em lágrimas declarando sua inocência e agradecendo a mobilização dos movimentos sociais na defesa da sua causa. A fragilidade de provas judiciais consistentes que o apontam como “olheiro” do tráfico e a comoção das redes sociais não foram elementos suficientes para interromper o processo de criminalização do funk. Sendo responsável por organizar um evento com 30 mil pessoas no Rio de Janeiro, Rennan com apenas 25 anos driblou as estatísticas sociais de um jovem negro periférico. Persegue- se assim, narrativas de negros e negras que ousaram escrever sua própria história. Como castigo por burlar os mecanismos do genocídio em curso, finda-se o espaço de sociabilidade cultural mais famoso do Brasil, apagando a memória e identidade cultural das favelas cariocas.

 

Por fim,  é sintomático constatar que um artista tão  relevante como MC Sapão teve o mesmo destino da maioria dos artistas, produtores e empreendedores negros do Brasil: morreu esquecido . E desolador perceber   os mecanismos de violência simbólica e real de um Estado que persiste em desacreditar e marginalizar o brilhantismo de jovens “ fora da curva” como o DJ Rennan da Penha. Carolina Maria de Jesus, escritora de relevância imensurável na literatura brasileira, foi explorada por empresários durante seu ascenço e execrada por alguns moradores de favelas que pensavam que ela estava rica. Morreu pobre e voltou a catar papéis na vida para sobreviver.Em uma das suas frases retratando a dura vida disse: “Eu cato papel, mas não gosto. Então eu penso: Faz de conta que eu estou sonhando.” . Que os artistas negros brasileiros possam  como Carolina criar estratégias para se combater o genocídio artístico, concretizando sonhos positivos em que possam ser agentes transformadores de suas carreiras.

Mariana dos Reis é professora do Instituto Benjamin Constant, doutoranda em educação e militante no campo anti racista, de educação e feminista interseccional

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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