Por Rudá Ricci, cientista político
Outro dia, recebi um convite do Conselho Episcopal Latino-americano (CELAM) e do Centro de Investigação Social Avançado (CISAV) para falar sobre os riscos da ascensão dos populismos (no plural) em nosso continente. Imediatamente, pensei em Weffort e Laclau. Afinal, são dois intelectuais obrigatórios na formulação dos populismos latino-americanos.
Reli o obrigatório “O Populismo na Política Brasileira” publicado por Weffort em 1978, composto por textos escritos entre 1963 e 1971. E voltei a me surpreender com sua originalidade e duplo engajamento: político e sociológico. Era a veia acadêmica de sociólogos (principalmente paulistas e cariocas) de esquerda forjados durante o regime militar que transitavam sobre os dois polos que Max Weber sugeria que operam em circuitos distintos.
O conceito de populismo é empregado a partir de um espectro teórico e político extremamente amplo, o que gera certa imprecisão técnica. Um tema espinhoso, portanto. Da experiência do Partido do Povo (EUA e Rússia) às práticas clientelistas articuladas por lideranças carismáticas ao longo do processo de urbanização acelerada na América Latina, chegando ao uso – e abuso – pelas vertentes ultraliberais a partir do final do século XX que sustentam que gastos sociais considerados excessivos provocariam desequilíbrio fiscal de tipo populista.
A leitura de Francisco Weffort era peculiar e se aventurou por essa seara. Sustentou que o populismo na América Latina surgiu com a emergência das massas populares na política, quando da adoção do sufrágio universal e urbanização acelerada na metade do século XX . Para ele, a prática populista se configura numa espécie de transformismo, termo gramsciano que simboliza uma antecipação das elites políticas às mudanças sociais e econômicas demandadas pelas massas urbanas para manter a ordem política. Weffort cita um célebre slogan do senador brasileiro Antônio Carlos que, nos anos 1930, teria dito: “Façamos a revolução antes que o povo a faça”. Nesse período, os interesses – e o voto – populares teriam ingressado no jogo político e eram operados por lideranças urbanas de classe média a partir de um forte clientelismo, tendo nos recursos públicos e aparato estatal a sua estrutura básica de manipulação.
Num artigo crítico aos ensaios de Weffort sobre o populismo, Daniela Mussi e André Kaysel Velasco e Cruz relembram que o autor foi influenciado pelo período em que a USP (anos 1963 e 1968) deu lugar a muitos estudos que refutaram o nacionalismo que alimentou o trabalhismo getulista e o comunismo soviético. Entre 1963 e 1964, recordam Mussi e Velasco e Cruz, participou de um projeto do Centro de Estudos Industriais e do Trabalho (Cesit), coordenado por Gabriel Cohn (e fundado por Florestan Fernandes), onde Weffort contribuiu com o capítulo “Política e massas”, no qual analisou criticamente as ambições e impasses da política nacionalista no contexto brasileiro. Foi quando redigiu, também, as primeiras conclusões da pesquisa empírica que conduzia a respeito das “raízes do populismo” nas eleições municipais em São Paulo.
Nesse período, Weffort já comentava o caráter de “parceiro-fantasma” da participação das massas populares na política brasileira depois de 1930, disputadas à direita e à esquerda e sendo objeto das “reformas de base”.
Desde então, o sociólogo que presidiu o Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC), desenvolveu um senso apurado para compreender o quanto a política institucionalizada brasileira se alimentava e incentivava a cidadania passiva das massas populares. Termo desenvolvido por Maria Victoria Benevides, a cidadania passiva era aquela restrita ao voto, sem qualquer outra participação no processo de tomada de decisão pública.
Não por outro motivo, Francisco Weffort foi entusiasta da fundação do Partido dos Trabalhadores e foi sempre preocupado com a cultura política – termo muito caro à sociologia argentina, mas não tão valorizada por essas bandas – tupiniquim.
Lembro das discussões que Weffort liderou no CEDEC na virada da década de 1980 para a de 1990. Preocupava-se com o desencanto popular com a democracia brasileira e se esforçava por entender qual caminho tortuoso ainda teríamos que seguir.
Em “Qual Democracia?”, livro publicado no início dos anos 1990 pela Companhia das Letras, sugeria que o fim da ditadura talvez não tivesse significado o início da democracia. Weffort temia que nossa democracia engatinhava justamente na quadra da nossa vida econômica que parecia em crise, em frangalhos. A questão que ficava era: como perceber a virtuosidade da democracia para quem não consegue emprego ou não consegue garantir o alimento para sua família? Weffort percebia uma tendência à ingovernabilidade do Brasil. Desde aquela época, a democracia brasileira se constrói em meio às crises, “alimento fértil para os conflitos sociais e para a violência de diversa natureza”, afirmava Weffort.
Qual democracia pode germinar num terreno infértil como esse?
Essa pergunta parece continuar ressoando nesse gélido início de agosto de 2021.
Weffort era um sociólogo engajado. E inquieto. Acompanhava a conjuntura e a perseguia para procurar entender como esse dilema original da cidadania inacabada em nosso país se resolvia ou se agudizava.
Foi candidato a deputado federal e cheguei a viajar com ele para minha cidade natal, Tupã, e a cidade natal dele, Quatá, distantes alguns quilômetros uma da outra. Ali, percebemos, Weffort contribuiria mais como intelectual de esquerda. Seu discurso era extremamente elíptico e reflexivo. Percebi algo do gênero quando Florestan Fernandes foi candidato a deputado constituinte. Como Weffort, Florestan não parecia levar jeito para o jogo político. A sua falta de traquejo me exasperou quando, ao convidar Florestan para apresentar sua candidatura na Fundação SEADE, começou sua apresentação dizendo que não sabia os motivos para alguém votar nele. Weffort não chegou a tanto, mas seu carisma político era muito menor que sua acuidade sociológica. Mesmo assim, Weffort foi responsável por parte da geração seguinte de sociólogos paulistas se engajarem na política. Seu artigo na Folha de São Paulo onde explicava os motivos para criação do PT, um partido absolutamente distinto dos demais, segundo a opinião que expressou, e fundamental para a mudança dos rumos políticos do Brasil foi lido por muitos jovens que ingressavam nos cursos de Sociologia.
Weffort engajou sociólogos na leitura dos clássicos, no prazer em pensar a política brasileira, no engajamento anti-dogmático. Refletia e quase se torturava para pensar o Brasil. Talvez, tenha sido o maior enigma que tentou desvendar. Um grande sociólogo. Um grande sujeito. Mas, afinal, nasceu na região metropolitana de Tupã. Ninguém esperava menos dele.