Por Guilherme A. Lemos da Silva Moreirai.
Aqueles que estudam as Forças Armadas no Brasil, em especial o Exército Brasileiro, enfrentaram grandes desafios durante os últimos quatro anos tentando explicitar as relações orgânicas estabelecidas entre aquela instituição e o governo do Capitão Jair Bolsonaro e do General-de-Exército Hamilton Martins Mourão.
Frequentemente tais esforços iniciavam-se pela exposição de um vídeo postado por Carlos Bolsonaro em seu canal no YouTube em novembro de 2014ii. Em seu conteúdo há imagens do Capitão da reserva do Exército, à época deputado federal, dirigindo-se aos formandos da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), onde formam-se os futuros oficiais da Força Terrestre. Bolsonaro ao dirigir-se à tropa manifestava o desejo de concorrer em 2018 para a Presidência da República, procurando “jogar para a Direita” o país, ao mesmo tempo que reiterava ser o compromisso dos militares “dar a vida pela Pátria”. Ao final, o então deputado concluía: “Esse é o nosso juramento, esse é o nosso lema: Brasil Acima de Tudo!”.
Durante os anos subsequentes Bolsonaro não mais perdeu cerimônias de formatura na AMAN, ombreando palanques com figuras que se tornariam centrais em seu governo: Generais Eduardo Villas Bôas, Augusto Heleno Ribeiro Pereira, Hamilton Martins Mourão, Walter Souza Braga Netto, Luiz Eduardo Ramos e tantos outros. Com Bolsonaro, militares advindos das Forças Armadas tornaram-se cabeça, tronco, membros, entranhas e alma do governoiii.
Todavia, apesar da exposição de militares em cargos políticos, que não geravam constrangimento do Comando do Exército em ceder seus generais da ativa ao governo, como foram os casos de Otávio Santana do Rêgo Barros, Luiz Eduardo Ramos e Eduardo Pazuello, frequentemente tal presença militar era vista como acessória e fruto da ausência de suporte político partidário, mesmo se tratando de um presidente eleito por um dos partidos mais votados em 2018.
Neste ínterim, por meio de declarações semanais à imprensa encenava-se o aparente afastamento das Forças Armadas e o governo, ao mesmo tempo que se realizava uma profunda militarização de estruturas ministeriais, passando pelo Ministério da Defesa, Saúde e uma potente, porém invisível, reestruturação do Gabinete de Segurança Institucional que datava da gestão do General Sérgio Etchegoyen ainda durante o governo de Michel Temeriv. Na profusão de supostas “intrigas” geradas pelas ações megalomaníacas de um Capitão, Generais apareciam cada vez mais apequenados e “reféns” de uma enrascada governamental.
Porém, dissipando-se a profusão de versões sobre os acontecimentos seria possível chegar a uma conclusão clara: em hierarquia militar, Generais mandam e um Capitão, obedece! O Capitão tornado presidente, fôra antes de tudo um projeto político da alta hierarquia das Forças Armadas, com íntima participação de generais do Exército Brasileiro das gerações de 1970 e 1980 da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN).
Transmutado em mito, o Capitão guiado por linhas de ação advindas de um grupo restrito de generais da ativa e da reserva, produziu as condições ideais para o apagamento desta verdadeira Central de Comando, Controle e Inteligência encastelada no Executivo Federalv, por vezes ocultada por retóricas de envolvimento e “venda” do governo para o Centrão ou de episódios como a exoneração dos três comandantes das Forças Armadas e do ministro da Defesa em março de 2021vi. Desenhava-se um cenário em que “desavenças” e trocas de mandatários eram tomadas pelos seus valores de face, quase sempre narradas a jornalistas por partes não tão desinteressadas: militares anônimos que povoavam o governo.
No entanto, se produzíssemos um corte temporal e nos transportássemos para os acontecimentos atuais veríamos uma paisagem bem familiar. Segundo veicula-se, o general Júlio César de Arruda teria sido removido do comando do Exército por conta de suas inações no dia 08 de janeiro e no enfrentamento aos acampados em frente ao QG do Exército em Brasília, bem como por conta de suas negativas envolvendo o Tenente-Coronel Mauro César Barbosa Cid e o suposto esquema de caixa 2 no Palácio do Planalto. Em seu lugar, optou-se pelo General Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva, que um dia antes (20) afirmava publicamente a necessidade de respeito ao resultado da urna e o caráter apolítico das Forças Armadas, tudo feito a partir de um aparente discurso improvisado e não menos político que um general com microfone na mão em uma certa motociata.
Curiosamente, em tempos sombrios, máscaras que lembrem um certo legalismo difuso são preferíveis a “golpistas” convictos. Somente assim inventam-se mitos, somente assim pode-se deixar de lado que o General Tomás era o então comandante da Academia Militar das Agulhas Negras em 2014, quando, juntamente com o restante da cadeia de comando do Exército, autorizou que o Capitão Bolsonaro transgredisse o Estatuto dos Militares e o Regulamento Disciplinar do Exército e lançasse sua candidatura dentro de um estabelecimento militarvii. Não tratava-se de “erro” no cerimonial ou mesmo “descuido”, mas sim de autorização expressa do Comando da Força Terrestre, que ali, também lançava seu projeto político à longo prazo.
Saído da AMAN, Tomás passou a chefiar o Gabinete do Comandante do Exército a partir de julho de 2015, sob a gestão do General Villas Bôas, um dos grandes responsáveis pelo projeto político vislumbrado pelo Exército a partir de 2014. Foi naquele mesmo gabinete chefiado por Tomás, que Villas Bôas juntamente com todo o Alto Comando redigiu o famoso tuíte às vésperas do julgamento do Habeas Corpus de Lula no STFviii. Anos antes, naquele mesmo recinto, haviam se reunido secretamente o então vice-presidente da República, Michel Temer, e toda a alta hierarquia da Força. Meses depois, Temer se tornaria Presidente da República com a destituição de Dilma Rousseff e traria para o governo um dos proeminentes participantes da reunião: o General Sérgio Etchegoyen, considerado o “homem forte” de seu governoix.
Neste fio de eventos é preciso que se compreenda a participação ativa das Forças Armadas e de seus quadros na história recente do país. Foi justamente realizando responsabilizações individualizadas e negando a particularidade da cultura militar, em especial no lastreamento disciplinar e hierárquico de declarações e ações levadas a cabo mesmo por militares da reserva, que a política brasileira viu surgirem figuras como os Generais Augusto Heleno, Hamilton Mourão, Villas Bôas e muitos outros. A simples substituição do comandante do Exército tem efeito analgésico a curto prazo e pode mais uma vez ser utilizada para dissimular o objetivo almejado pela própria instituição: manter-se como um potente participante das negociações políticas independentemente da alternância de poder, encapsulando no mundo militar dimensões vitais da Política, entre as quais, a própria Democracia.
i Guilherme A. Lemos da Silva Moreira é formado em Ciências Sociais e mestrando em Antropologia Social pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Pesquisa o Exército Brasileiro, em especial sua inserção na Amazônia.
ii https://www.youtube.com/watch?v=MW8ME9S87SI
iii https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2021/07/generais-arrastam-forcas-armadas-para-a-politica-e-governam-o-pais-com-partido-militar.shtml
iv https://apublica.org/2019/04/caminho-de-bolsonaro-ao-poder-seguiu-logica-da-guerra-diz-antropologo-que-estuda-militares/
v https://www.ihu.unisinos.br/categorias/159-entrevistas/610493-projeto-bolsonaro-e-finito-mas-e-preciso-ficar-atento-aos-militares-entrevista-especial-com-piero-leirner
vi https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/03/30/ministerio-da-defesa-anuncia-saida-dos-comandantes-das-tres-forcas-armadas.ghtml
vii https://twitter.com/marcelopjs/status/1616569726150262786
viii https://twitter.com/olemos_gui/status/1616893823002738689
ix https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/11/02/em-livro-temer-revela-contato-com-militares.htm