Há fogo na aldeia, grandes pratos de cerâmica e grelhas de ferro e arame se aquecem à chama dos paus, para o preparo do beiju e moqueamento do farto peixe vindo da lagoa mágica Ipavu. Na tradição dos índios Kamayurá, no Alto Xingu, entre tantas outras etnias aqui localizadas,  suas diversas grandes lagoas significam mitos e antigas histórias em cosmogênese entre seus seres fantásticos, espetaculares nelas residentes e em ritos de passagem ilustram toda eficácia simbólica da rica mitologia indígena.

Minnie Mouse passeia no paraíso, enquanto crianças inventam um mundo, sem atropelos no descobrimento diário das possibilidades.

Há trânsito de crianças às margens e leves praias de areia se estendem, onde lavadeiras e seus panos e panelas, entre pequenos barcos aguardam vindas e partidas, num rush de atividades que prosseguem da alvorada ao crepúsculo. É momento de fartura entre muitos, pois o peixe e o polvilho rendem ao trabalho de todos boa safra, diferente do ano passado, quando diversas comunidades se precarisaram na oferta dos alimentos tradicionais da roça em virtude de forte e prolongada estiagem, e constantes incêndios em todo o Estado do Mato Grosso.

Mulher Kamayurá limpa os tucunarés nas águas da Lagoa Ipavu, local sagrado em suas gêneses e protegido por sucuris e seres mitológicos.

Na aldeia agora também se iniciam os ensaios para o Kuarup que se aproxima, ritual de choro e libertação de seus mortos, entes queridos. Esse ano, especialmente, entre outros, as etnias Kamayurá e Kalapalo e diversos grupos de convidados, homenagearão o médico Roberto Geraldo Baruzzi, um dos pioneiros, especialista em saúde indígena, que, no Parque Indígena do Xingu, implantou um programa de extensão universitária da Escola Paulista de Medicina, há 53 anos  atuando entre muitos povos. Dr. Roberto Baruzzi faleceu no ano passado, e seus amigos indígenas se despendem desse período de luto, entre outros entes, com grande e diversa festa ritualística.

Jovens Kamayurá iniciam período de treinos da luta  Huka-Huka, para o Kuarup, luta tradicional na região do Alto Xingu.

Os dias na aldeia prosseguem assim, entre zelo e preciosidades, sem nada a fazer em tarde onde tudo acontece em seu lugar. Eu em certo início de tarde estava a banhar na lagoa e após lavar algumas roupas, nadava solitário e não sei se era pela visão da margem serena que pensava em verso do poetinha Vinícius e em fidelidade cantarolava:

de tudo ao meu amor serei atento, antes e com tal zelo, e sempre, e tanto, que mesmo em face do maior encanto dele se encante mais meu pensamento.

Mulheres desciam com seus filhos pequenos para as roupas lavarem também, mas de repente passaram a gritar para eu sair da água, voltar, pois a cobra grande elas estavam vendo. Eu prontamente atendi e me estimulei com o alvoroço repentino e inusitado. Da margem vi com elas os movimentos na água que em borbulhas agitava a lagoa serena. Sucuri é dona da lagoa e há de se tomar cuidado, aprendi bem, e zelar pelo seu mundo também, as águas profundas. Fui com alguns jovens após o inusitado fato, buscar ver a tal sucuri, fazer barulho na água para espantá-la, mas nada vimos.

Enfim Cobra Grande repousa e guarda. Kamayurá persiste.

Meus companheiros valentes e em aventura inusitada, buscávamos em vão a sucuri, dona da lagoa, e que nos retirou momentaneamente das águas e seus prazeres.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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