Flávio Dino e a linguagem da ordem

O novo ministro usou as palavras-chave que acionam o imaginário popular conservador: "Terroristas", "subversivos", "segurança nacional"

Por Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

A crise democrática em curso no Brasil desde junho de 2013 embaralhou a realidade de tal modo que o vocabulário político usual também entrou em curto-circuito. É necessário estar muito atento a isso. Afinal, elaborar discursos que façam a realidade ter sentido é o ato politico mais fundamental que existe. Me limito neste texto a um exemplo, que me parece bastante emblemático dessas transformações políticas, e semânticas.

Antes, eram os grupos mais autoritários e violentos que controlavam a linguagem da ordem, o vocabulário da segurança nacional. “Terroristas”, “subversivos” eram sempre os adversários, fossem os grupos de esquerda que se envolveram na luta armada nas décadas de 1960 e 1970, fossem os sindicalistas dos anos 1980.

Práticas bastante diferentes como resistência armada e greve geral eram reduzidas à mesma lógica discursiva: atos subversivos que ameaçavam a segurança nacional e a estabilidade da vida cotidiana.

Esse discurso se mostrou eleitoralmente muito poderoso na democracia que sucedeu a ditadura.

Lula foi derrotado três vezes por essa semântica. Só conseguiu ser eleito em 2002, quando aparou a barba, vestiu terno de fino corte e escreveu uma “Carta ao povo brasileiro” se comprometendo a respeitar propriedades e contratos. Os menos atentos acham que a tal cartinha foi apenas para agradar ao mercado e às elites e que o povo, na verdade, teria sido traído.

Não, não e não! Foi uma carta, também, ao povão.

O povão também não gosta de subversivo, não gosta de grevista travando o trânsito e atrapalhando a volta pra casa, depois de um dia cansativo de trabalho. Pense só: o trabalhador sai de casa às 5 da manhã. Às 18, descobre que as ruas estão travadas por conta de “protesto”. A criatura quer nem saber qual é a causa. Já está contra as demandas e dizendo que os manifestantes são vagabundos e outros xingamentos impublicáveis.

Povão não gosta de greve na escola do filhos. Se não tem onde deixar os meninos, faz como pra ir trabalhar? Rapidinho, os professores também viram “vagabundos”.

Povão odeia bandido varejista, aquele que pratica pequenos furtos, que rouba o celular parcelado em 12 vezes nas Casas Bahia. Quando é pouca, a propriedade é ainda mais valiosa.

Sim, leitor e leitora. O “povão” é conservador no sentido elementar da palavra: gosta de rotina, de previsibilidade. Se eu tô generalizando? Tô, sim. Mas vamos combinar, né? Questão só de observar a realidade com algum respeito intelectual, sem querer torcê-la pra fazer caber no desejo. No Brasil, povão povão mesmo, não é revolucionário. Nunca foi.

Onde quero chegar com isso tudo?

Quero dizer que temos oportunidade inédita de nos apropriarmos da potente, e popular, linguagem da ordem.

Quem está na rua fechando estradas e atrapalhando o fluxo cotidiano da vida? Quem está ameaçando explodir bomba em aeroporto?

Hoje, os subversivos são eles, os filhotes da ditadura. Eles são os terroristas. O discurso da ordem pertence ao campo democrático, aos que foram derrotados em 1964. E como em tudo na vida, também aqui as palavras têm poder.

Temos uma liderança que sabe exatamente disso: Flávio Dino, ministro da Justiça, será peça chave no terceiro governo Lula.

No último dia 27, Dino deu entrevista coletiva ao lado de Ibaneis Rocha, governador do DF, e José Múcio, ministro da Defesa.

Em si, a entrevista foi gesto político muito habilidoso. Ibaneis Rocha é bolsonarista e o fato de ter participado de uma entrevista se comprometendo com a desmobilização dos acampamentos golpistas é sinal muito importante. A tendência é que, cada vez mais, antigos aliados desembarquem do bolsonarismo conforme a pecha de “terroristas” for colando nos apoiadores de Bolsonaro.

Dino usou as palavras-chave que acionam o imaginário popular conservador: “Terroristas”, “subversivos”, “segurança nacional”. Faltou só falar em “guerrilha urbana”, pois é exatamente isso que o bolsonarismo se tornou: organização terrorista de guerrilha urbana.

Se o ministro, por acaso, esbarrar com este texto, deixo, humildemente, a sugestão. Fale em ‘guerrilha urbana’. Diga que os bolsonaristas são “guerrilheiros”.

Longe de mim querer “fazer à Poliana” e ver algo de positivo na existência dessas células terroristas. Mas acredito que há aqui uma linguagem que precisa ser explorada, a todo o momento.

Eles são os vagabundos, os desocupados, os subversivos, os terroristas. São os guerrilheiros.

Nós somos os trabalhadores, pagadores de impostos. Respeitamos a lei e a ordem.

A derrota política do bolsonarismo passa pelo uso da potente linguagem da ordem, que tem raízes profundas no imaginário popular que, insisto, é conservador.

É trunfo do qual não podemos abrir mão, ainda que usá-lo, sei bem, nos cause algum constrangimento. Bobagem! Os tempos são outros!! E não há nenhum mal em ser conservador, desde que a democracia seja a ordem a ser conservada.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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