Fake news e eleições 2018: quem é a ONU na fila do pão?

Lula discursa na ONU em 2009. Foto: Marco Castro/UN Photo

Por Rosana Borges

O recente episódio do comunicado do Comitê de Direitos Humanos sobre o direito de Lula concorrer à eleição até que o caso tramite em julgado era a fagulha que faltava para deixar a contenda ainda mais abrasiva. Uma vez que a nota adveio de um órgão que reza na cartilha da diplomacia, alguns termos, como era de se esperar, deram margem a dúvidas e, mais do que isso, a manipulações de ordem vária.

Conselho, Comissão, Corte, Tribunal…., todos de Direitos Humanos das Nações Unidas, foram acionados para embaralhar a situação, atribuindo, na maioria das vezes, inferioridade ao Comitê. Para quem adotou esta estratégia discursiva capenga, o Comitê não habitaria, por exemplo, o mesmo patamar de um Conselho, este com força de deliberação, o que tornaria a nota sobre o direito da candidatura de Lula mais um artificio superfaturado pelo PT, “petralhas” e simpatizantes.

O jornalista Carlos Sardenberg, da Rede Globo, foi um dos que rebaixou o papel do Comitê de Direitos Humanos, pondo-se adiante a sentenciar que a nota do órgão da ONU é simplesmente uma fake News (sic):

“Fake News não são apenas mentiras deslavadas. Quer dizer, muitas são, mas facilmente desmentidas. As que produzem efeitos fortes são as fake mais elaboradas, com base em algumas verdades e muitas distorções. Há um jeito simples de entendê-las: buscar a história em sua fonte original, ali de onde partiu a informação posteriormente manipulada. (…). O primeiro comunicado é do Comitê de Direitos Humanos, um órgão formado por 18 “especialistas” independentes – acadêmicos em geral – e que não tem nenhum poder decisório ou mandatório. Está lá no site da ONU: a função do Comitê é “supervisionar e monitorar” o cumprimento dos acordos internacionais de defesa dos direitos humanos. E fazer recomendações, sempre em entendimento e consultas com os países envolvidos. (,,,).A nota do Comitê é uma fake news, que originou outras fake news.”

Desprovido de embasamento necessário para julgar a competência e natureza dos comitês da ONU, Sardenberg tomou partido de um assunto sem cumprir o dever jornalístico de efetivamente se inteirar com quem entende do riscado. Contra supostas tendências e enviesamentos, foi tendencioso e enviesado. A rebordosa veio a passos largos.
Especialistas (mas Sardenberg, como se vê, desdenha desta categoria, flagrando o mau jornalismo do qual é praticante) descortinaram a ignorância e/ou manobra do jornalista global. Para estudiosos e operadores do Direito, a decisão do Comitê de Direitos Humanos tem caráter de cumprimento obrigatório porque no momento que foi ratificado o Protocolo Facultativo ao Pacto de Direitos Civis e Políticos – Decreto nº 311/2009, as decisões do Comitê passaram a ser vinculantes.

Segundo Leonardo Soares Nader, pesquisador em Direitos Humanos e Política Global na Universidade de Pisa, o Comitê não é um tribunal, “mas o procedimento de petição é considerado “quase-judicial” pela natureza contenciosa do processo. Apesar de não ter mecanismos diretos de sanção ou de “obrigar” o Estado a respeitar suas decisões, as decisões do Comitê sobre a aplicação do tratado são reconhecidas pelos Estados como a jurisprudência mais autoritativa”. (extraído de artigo publicado no site do Justificando).
O ex-ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, partilhando destas considerações, afirma taxativamente que o Brasil só tem duas opções: “cumprir a decisão ou se tornar um pária internacional”. O chanceler esclarece que o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos assinado pelo Brasil tem força normativa. “O pacto assinado pelo Brasil foi internalizado, a liminar tem que ser cumprida.”

Tornou-se, assim, exemplo de vergonha alheia (ou nossa) a resposta do Ministro da Justiça, Torquato Jardim, carimbando a medida cautelar do Comitê da ONU de “intromissão indevida”.

Mas quem é a ONU na fila do pão?

Esse jogo de braços nos leva a intensificar a polêmica (na verdade, falsa polêmica) para fora dos perímetros das Nações Unidas.

A despeito de a ONU ser ainda um órgão multilateral que tem como propósito promover a cooperação internacional, muitas das suas orientações e condenações vêm sendo sistematicamente desrespeitadas.

Relembremos algumas: os conselhos de Segurança e de Direitos Humanos condenam, exigem e reclamam uma solução para a guerra histórica entre Israel e Palestina e são solenemente desprezados; A ONU desautorizou a invasão dos EUA no Iraque e… sequer foi ouvida; a ONU declarou inválida apartar a Crimeia da Ucrânia e o que aconteceu? O Conselho de Segurança da ONU votou, por unanimidade, um cessar-fogo na Síria, mas nenhum músculo foi movido…

A infeliz e indelicada resposta do ministro Torquato Jardim prepara a cena para a decisão oficial. Além disso, temos um dado suplementar que desenha a nossa ambiência jurídico-política: desde 2016, vivemos na era do “com STF, com tudo”, fazendo-nos concluir o quão será difícil o cumprimento da liminar.

Analistas insistem, caso a liminar não seja cumprida, que as eleições não serão declaradas ilegítimas, “o Brasil não sofrerá boicote, não será expulso da ONU ou OEA, nem perderá reconhecimento de país democrático”. Ainda com Soares Nader: “a PEC do congelamento de investimentos sociais foi geralmente considerada violadora, denunciada como tal por diversos especialistas e, ainda assim, o Brasil de Temer conseguiu passar incólume por diversos mecanismos internacionais de direitos humanos: elegeu-se para o Conselho de Direitos Humanos da ONU; elegeu Flávia Piovesan para a Comissão Interamericana e passou pela Revisão Periódica Universal como se tudo estivesse na plena normalidade”.

Ao jogar este balde de água fria sobre as expectativas de muitos em torno do cumprimento da liminar, não quero com isso diminuir seu poder de fogo simbólico: a defesa ganha tempo e fôlego, interesses internacionais sobre a operação Lava Jato aumentam, a narrativa de que há perseguição e que trata-se de uma prisão política se reafirmam (aliás, o maior massacre jurídico e midiático da nossa história). A liminar da ONU tonifica em termos morais e éticos a petição dos advogados de Lula ao Órgão.

Sabemos o quanto simbolismos mobilizam forças ocultas no imaginário do eleitor (já tem até marqueteiros sentenciando que Haddad e Manuela ganharão [caso Lula seja vetado] simplesmente pela foto dos dois, uma síntese perfeita de alegria e felicidade de um casal jovem, bonito, vigoroso – atributos que mobilizam ideais culturais desde que o mundo é mundo, ou quase).

Sem entrar no mérito destas análises, podemos contar com um ativo importante: Lula só vem crescendo nas pesquisas; mesmo preso, ele se levanta, para lembrar trecho do lindo poema de Maya Angelou. É preciso fazer desse ativo um combustível para restabelecermos estratégias e táticas para a renovação das esperanças.

Histórica, certamente a liminar da ONU vem como uma ajuda fundamental, mas será da recomposição de forças que a promessa de sermos felizes de novo se cumprirá. Será com a reatualização das novas formas de vida e de existência que “não deixaremos o samba morrer”. Decididamente, essa missão não está dada a senhoras circunspectas que entoam a música como se colegiais fossem, mas que colaboram para cavar a cova da democracia já combalida e quase morta. Viva a democracia, por um país feliz de novo e com o samba mais vivo que nunca!

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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