Existir e Resistir

Chegar na USP hoje (12.11.18) me despertou fortes emoções.

Cursei Pedagogia nesta Universidade de 1967 a 1970. Vivíamos a Ditadura que se aprofundou na Universidade com a invasão do Exército em 1968: fechamento do CRUSP, residência estudantil, prisão de estudantes e professores, perseguição política, expurgo de professores, exílio, desaparecimentos. Terminar a Faculdade para mim neste período exigia um esforço e um convencimento pessoal cotidiano de que era importante naquele momento conseguir o “canudo”. Com a morte de meu pai precocemente em 1968, tive que me transferir para a noite para ajudar no sustento da família. Arrumei 2 empregos. Eram muitos deslocamentos, desgaste e quase nenhuma compensação do ponto de vista de minha formação profissional que se forjou muito mais pelos desafios do trabalho do que pela formação acadêmica. Tinha aula à noite, muitas vezes nos barracões improvisados das Ciências Sociais, da Psicologia.

Na Faculdade de Educação embora o que me tivesse movido a escolha da profissão tivesse sido Paulo Freire, ele não entrava no currículo, centrado em Administração Escolar em que tínhamos que decorar as leis, Filosofia apenas dos filósofos gregos, História da Educação em que diante da reivindicação de estudarmos educadores mais recentes, nos forçaram a ler a “Educação do Príncipe” de Maquiavel, com apenas 2 exemplares na biblioteca. Em Psicologia Social, o programa que versava sobre comunicação, formação política e consciência crítica, foi revisto para estudarmos o comportamento social das focas e das formigas, muito mais oportuno e importante para o momento… Quase todas as noites os espaços do campus estavam tomados por cavalarias e militares que nas janelas de vidro das portas das salas de aula, vigiavam professores e alunos.

Afinal que conteúdos e reflexões estavam propondo nas salas de aula?

Nos finais da década de 80 e início de 90, a USP já era outra, com professores comprometidos, centros de estudos voltados para inserção e compromisso com a construção de uma sociedade mais digna e justa.

Lembrei-me hoje de trabalhos apresentados na década de 90 em espaços acadêmicos da USP, a partir de minha vivência profissional na Prefeitura, acolhidos na História e Geografia pelo Professor Milton Santos e no Centro de Estudos Rurais e Urbanos CERU pela professora Maria Isaura Pereira de Queirós.

Diante da conjuntura que estamos vivendo não pude deixar de fazer memória: a quebra da democracia, a perda de direitos, a onda de conservadorismo, o desrespeito às diferenças e a violência institucionalizada, o ataque às universidades e o cerceamento à liberdade de ensino e de pesquisa, os retrocessos em todas as áreas, me remeteram ao tempo da ditadura.

Confesso que ao chegar no auditório da História e Geografia, fiquei emocionada. A convocatória para eventos de 2 dias “Existir e Resistir”, por professores e lideranças de institutos de pesquisa e de movimentos sociais de diversas áreas, fez acionar o motor da esperança!

Na mesa sobre o Ódio, conduzida pelos professores Tessa Lacerda e Renan Quinalha, com apoio de outras áreas, senti o afirmar o compromisso da Universidade com a sociedade, situar a pesquisa e o conhecimento como instrumento e apropriação da realidade para poder transformá-la.

ESCOLA SEM PARTIDO, NÃO!

No que podemos contribuir para enfrentar essa realidade? Vivemos em tempos sombrios em que atônitos queremos entender o que se passa e o que se passou para que Bolsonaro, deputado federal há 28 anos, sem ter aprovado nenhum projeto de importância para o país, um capitão do exército despreparado, temperamental, truculento e sem nenhuma compostura para ser Chefe de Estado, obteve 59 milhões de votos. Sua campanha não tinha propostas, suas falas agressivas, anunciando perda de direitos e destilando ódio, ganharam adesão e tiveram écos em milhões de corações brasileiros.
Tessa Lacerda, professora da Faculdade de Filosofia da USP, filha cujo pai foi torturado e morto pela Ditadura Militar com sua reflexão e depoimento, mexeu na ferida: nosso país foi o único que não quis investigar e penalizar os responsáveis pelas torturas, mortes e desaparecimentos.
Temos que lembrar dos vivos e temos que lembrar dos mortos. Este não é um trabalho perdido. Ainda em 2014 foram descobertas valas de Perus, a tortura, desaparecimento e morte ainda é uma prática e lembra Brecht em seu poema “Porque meu nome ainda será lembrado?” Em maio deste ano, uma nota questiona a Lei da Anistia aos presos políticos. É difícil falar em um país que não nos deixa falar que mais de 200 mil pessoas foram torturadas…

 

Em 06.11.18 a ponte de Brasília que no governo do PT passou a se chamar Honestino Guimarães, volta a se chamar General Costa e Silva.

Porque lembrar o passado não vivido? A memória faz parte do passado para buscar o sentido para o presente. Como fazer para que o olhar do passado extrapole a dimensão individual para o sentido coletivo. A memória dos sem nome (Benjamin) é que deve ser relembrada, a história dos oprimidos que ganhariam alguma voz com a Comissão da Verdade e outros, passou a ser sufocada a partir de agosto de 2016. Conhecer o passado para interferir no presente. Falar tem um sentido não apenas terapêutico mas um sentido político. Muitos das novas gerações e das pessoas que nestas eleições defenderam e defendem a ditadura militar, não tem ideia do que ela foi.

A história do século XX é de que muitos que viram o horror, já não podem falar. A descoberta do documento da CIA denunciando o extermínio é segundo Jean Marie uma história que não deixou túmulos, ossos e rastros.

Porque a ditadura se perpetua? A negação dos agentes da repressão como política de Estado, mesmo após a Comissão da Verdade é uma maneira de se relacionar com o passado que sanciona a opressão e o extermínio de minorias e lideranças. Hoje a prática da tortura se naturalizou, permitindo incêndio de aldeias indígenas, assassinato de pessoa que se pronunciou diferente e lideranças do campo, Marielles, morte de LGBTs entre o 1o e o 2o turno, extermínio cotidiano de jovens negros.

Segundo o Professor de Direito da UNIFESP, Renan Quinalha, o Brasil é o único país do mundo que após a Ditadura e a Comissão da Verdade, articulou o golpe.

Para ele, a LGBTfobia faz parte da ideologia de gênero que sempre segregou a sociedade. Esta divisão binária provocou o desequilíbrio, a submissão e a estigmatização do feminino. 2% da população mundial é de população intersexo, hermafrodita. A fobia é fruto de uma ordem compulsória de sexo, gênero e desejo. Nos dias de hoje há 1 assassinato de LGBTs a cada 19 hs, dado que é subestimado e o Brasil é um dos países que mais matam LGBTs. A violência é algo constitutivo do nosso estado de direito, faz parte da hegemonia biopolítica em que impera a dominação de uma minoria sobre a grande massa da população. Exemplo disso é Dandara no Ceará, olham o deslocamento da violência como algo “natural” da sociedade.

O que estamos vivendo hoje no Brasil, a violência e o ódio, é reação a conquistas recentes: ao direito a mudar o nome no cartório conforme orientação sexual, casamento homossexual, maior acesso à educação, abertura de novas universidades e política de cotas, conquistas de espaços públicos. Esses novos costumes e direitos que mudaram provocaram cruzadas morais como resposta as conquistas em que a Escola Sem Partido é um exemplo. Esta onda conservadora é cíclica, e hoje estamos no olho do furacão. Temos a obrigação de barrar esta onda conservadora, estamos vivendo um ciclo de degradação institucional. É necessário sair do pânico, olhar com certa serenidade novas formas de resistência e luta. Desde já o governo Bolsonaro se aponta como um bate cabeça generalizado entre diferentes atores Paulo Guedes, Moro, Alexandre de Moraes… O governo do Bolsonaro não tem nenhum compromisso político, não há clima de unanimidade, a crise econômica não será superada facilmente. Esse é nosso pano de fundo.

É importante repensar quais eram os limites dessa democracia pois só algumas parcelas da população tinham direitos. A dimensão identitária não foi pensada, é preciso e urgente a esquerda se abrir.Momento de repensar e acumular forças e ver uma perspectiva mais generosa das esquerdas. É aí e nos movimentos sociais que nasce a esperança!

Aberto o debate algumas pessoas reforçaram a importância de retomar o trabalho de base junto ao povo, às periferias, fortalecer e organizar a resistência da sociedade civil. Falou-se dos Coletivos da Resistência que envolvem vários grupos da cultura e outros: Linhas de Sampa, midias independentes como Jornalistas Livres, Flores pela Democracia, Lulaço, Flores da Resistência, Camisa 13, e tantos outros. São novos desafios, nova realidade, novos costumes, novos contornos. Precisamos ser criativos, valorizar as diversas formas de manifestação da cultura, reforçar laços de solidariedade, criar novas linguagens, estar junto, escutar, seguir, avançar…

Nossos desafios não poderiam ser explicitados de maneira mais clara mediante a intervenção de um professor da História, quando um grupo de Maracatu iria se apresentar como parte da programação. Chegou com muita arrogância, indignado, furioso com o barulho da música.O barulho atrapalharia as aulas, ele tem razão, mas era preciso tanta truculência? Disseram que é um professor de esquerda, dialogar e escutar o outro é um dado fundamental do EXISTIR E RESISTIR.

Há disposição e compromisso: professores, alunos e coletivos na luta! Estamos juntxs!

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