EUA usam ameaça chinesa para impor imperialismo

Os EUA querem renovar a Guerra Fria contra a Rússia e China na América Latina. E essa nova Guerra Fria, como a anterior, emana da ainda mais antiga Doutrina Monroe.

Como o grande Yogi Berra disse certa vez, “é déjà vu tudo de novo.” O Comando Sul dos Estados Unidos, vem declarar e renovar a Guerra Fria contra a Rússia e China na América Latina. E essa nova Guerra Fria, como a anterior, emana da ainda mais antiga Doutrina Monroe de 1823 na qual o Presidente dos US James Monroe declarou que os EUA têm domínio exclusivo sobre o Hemisfério Ocidental.   

O Presidente Teddy Roosevelt acrescentaria seu famoso corolário dessa Doutrina, declarando que os EUA têm o direito de usar força militar para impedir que países de fora interfiram no “quintal” dos EUA. Nem a Doutrina Monroe nem o corolário de Roosevelt foram até agora repudiados pelos EUA.

Assim foi que, em 16 de março de 2021, o Almirante Craig S. Faller, Comandante do US SouthCom, emitiu declaração à US Senate Armed Services Committee [Comissão de Serviços Armados do Senado dos EUA] na qual aludiu, nos termos mais histriônicos, à necessidade de os US contraporem-se à influência russa e chinesa na América Latina, sob pena de os países da região caírem nas garras do Oriente e de outros países tais como Cuba, Venezuela e Nicarágua, que ele descreve como “agentes estatais regionais malignos.

O Almirante Faller deu o tom com o seguinte comentário: “Tenho incrível sensação de urgência. Este Hemisfério em que vivemos está sob ataque. Os próprios princípios e valores democráticos que nos argamassam estão sendo ativamente solapados pela China e Rússia. Estamos perdendo nossa vantagem posicional neste Hemisfério e é necessária ação imediata para fazer reverter essa tendência.”  

Como de costume, todavia, Faller em nenhum momento explica como atividades russas e chinesas na região – tais como o despacho de vacinas contra Covid-19 e fornecimento de apoio financeiro e de infraestrutura a países necessitados – representem ameaça ao pretenso compromisso da região com princípios democráticos. 

Reverberando ainda a Doutrina Monroe, Faller declara: “A Estratégia de Defesa Nacional identifica a defesa da pátria como objetivo fundamental de defesa e reconhece que nossa terra natal não pode estar segura sem Hemisfério Ocidental estável e seguro. A missão precípua do USSOUTHCOM é manter nossa vizinhança a salvo daqueles que procuram causar-nos dano, a fim de que nosso país continue em segurança.”

O Almirante Faller tenta elevar o espectro de China e Rússia tomarem a região por meio de sua “diplomacia de atendimento médico” durante a crise da Covid-19. O fato de China e Rússia estarem enviando equipes médicas e vacinas para toda a região e o mundo para combate à pandemia tem o poder de alarmar os US, que aparentemente só entendem o uso da “diplomacia canhoneira” (palavras usadas para descrever as políticas do Presidente Teddy Roosevelt no Hemisfério Ocidental), mas tal diplomacia médica não deveria ser motivo de preocupação para a maioria das pessoas racionais.

O fato é que os EUA têm perdido legitimidade na região e no mundo precisamente por terem conferido prioridade a guerra em vez de paz, bombardeio em vez de assistência de desenvolvimento real, e força em vez de diplomacia.

O que países como Rússia e China aprenderam é simplesmente expressado pelo velho adágio segundo o qual seduzir abelhas com mel dá mais resultado do que tentar atraí-las com vinagre. Essa é uma lição que os EUA ainda estão por aprender, e muito em detrimento dos próprios americanos e de todo o mundo.

E o que dizer da afirmação do US SouthCom de que Cuba, Venezuela e Nicarágua é que seriam os “agentes estatais regionais malignos” responsáveis pela desestabilização da região? Os fatos simplesmente não dão sustentação a isso. Pelo contrário, os estados clientes dos EUA é que são as reais influências malignas.

Cuba e Venezuela têm mostrado significativa solidariedade médica com outros países da região. Muito notavelmente estiveram, como o New York Times reconheceu, na linha de frente da luta contra a epidemia de cólera no Haiti depois do terremoto de 2010. E, muito recentemente, a Venezuela enviou oxigênio desesperadamente necessário ao Brasil eivado de Covid apesar de carente quanto a seu próprio suprimento. Além disso, Cuba e Venezuela foram as agentes principais na região na consecução do acordo de paz de 2016 entre o governo colombiano e os guerrilheiros da FARC.

Entrementes, enquanto os EUA seguem confusos com outro surto de migrantes da América Central – principalmente de Honduras, El Salvador e Guatemala – um único país central-americano destaca-se como, no geral, não contribuindo com migrantes para os EUA, e é justo a Nicarágua. E isso pelo fato de a Nicarágua, sob liderança dos Sandinistas, ter-se estruturado de modo relativamente estável e próspero, enquanto Honduras, El Salvador e Guatemala ainda não se recuperam das brutais guerras dos anos 1980 apoiadas pelos EUA. No tocante especificamente a Honduras, a jornada do país de volta à paz foi solapada pelo golpe apoiado pelos EUA em 2009 que derrubou o governo progressista e democrático do Presidente Manuel Zelaya.

Isso quer dizer que não são Cuba, Venezuela ou Nicarágua os “agentes malignos” na região. Nem são Rússia e China quem representa ameaça à democracia no Hemisfério Ocidental. Pelo contrário, os próprios EUA é que são a verdadeira força maligna. Na verdade, o número de vezes em que os US intervieram para derrubar governos democráticos na América Latina e no Caribe, só para substituí-los por homens fortes e ditaduras militares, é quase grande demais para ser contado, mas a derrubada, pela CIA, do Presidente Arbenz da Guatemala em 1954, o golpe militar apoiado pelos EUA no Brasil em 1964 e o golpe apoiado pelos EUA contra Salvador Allende em 1973 são apenas alguns exemplos notáveis, e esses golpes continuam a ter impacto significativo em toda a região.

Embora esses e outros golpes antidemocráticos tenham sido amiúde justificados por afirmações relacionadas com a Guerra Fria segundo as quais eles foram necessários para impedir a interferência da URSS, a verdade é que a influência real da União Soviética no Hemisfério Ocidental era relativamente modesta, mas foi sempre exagerada pelos EUA para justificarem sua prática de longa data e prerrogativa de intervir em outros países da região a bel-prazer. E, assim, os EUA invariavelmente acusavam o país visado para mudança de regime de ser joguete dos soviéticos quando, na verdade, o país estava apenas ansiando por independência.

Como o autor e jornalista William Blum, ex-programador de computador do Departamento de Estado dos US, explica em seu livro de referência, Killing Hope:

Qual tem sido pois o fio condutor comum aos diversos alvos de intervenção estadunidense que fazia descer sobre eles a ira, e amiúde o poder de fogo, da nação mais poderosa do mundo? Em praticamente todos os casos envolvendo o Terceiro Mundo . . . , tem sido, de uma forma ou de outra, política de “autodeterminação”: o desejo, nascido de percepção de necessidade e de princípios, de perseguir a vereda de desenvolvimento independente dos objetivos da política externa dos EUA(*).  . . . Não há como enfatizar em excesso que tal política de independência tem sido vista e expressada por numerosos líderes e revolucionários do Terceiro Mundo como não devendo ser entendida como equivalente, por definição, ao antiamericanismo ou pró-comunismo, devendo antes ser entendida simplesmente como decisão de manter posição de neutralidade e não alinhamento em relação às duas superpotências”

E, como Blum adicionalmente explicou, os EUA têm usado as táticas mais repreensíveis para manterem tais países submetidos: “os Estados Unidos permanecem comprometidos com sua política useira e vezeira de estabelecer e/ou apoiar as mais vis tiranias do mundo, cujas atrocidades contra seu próprio povo confrontam-nos diariamente nas páginas de nossos jornais: brutais massacres; tortura sistemática e sofisticada; açoitamentos em público; soldados e policiais atirando em multidões; esquadrões da morte apoiados pelo governo; dezenas de milhares de pessoas desaparecidas; extrema privação econômica . . . estilo de vida que é praticamente monopólio detido pelos aliados dos Estados Unidos, desde Guatemala a Chile e El Salvador, Turquia, Paquistão e Indonésia . . . .”

Essas palavras refletem verdadeiras hoje em nossos dias. Os atuais alvos de intervenção dos EUA no Hemisfério Ocidental, tais como Cuba, Venezuela, Nicarágua e Bolívia, são países em busca de sua própria vereda independente rumo ao desenvolvimento e ao direito de usarem seus próprios recursos naturais em benefício de seu próprio povo em vez de em benefício de multinacionais dos EUA. E isso é exatamente o que é inaceitável pelos EUA e seu posto avançado militar regional, o US SouthCom. Do ponto de vista deles, tais países não têm o direito de seguir seu próprio caminho independente, e os EUA usarão quaisquer meios para assegurarem-se de que não o façam. Para justificar suas ações contra aqueles países, o US SouthCom está invocando o velho adágio manjado da “ameaça” russa e chinesa em “nosso quintal.” Essa afirmação, contudo, é tão espúria quanto aquela tão agressivamente impingida durante a primeira Guerra Fria. 

Como tem sido verdade nos últimos dois séculos, desde o tempo do anúncio, pelo Presidente Monroe, de sua famosa Doutrina imperialista, há realmente ameaça à democracia e à liberdade no Hemisfério Ocidental, e ela é os próprios Estados Unidos. Essa é a verdadeira ameaça com que nos deparamos.

* Daniel Kovalik, que passou a colaborar com os Jornalistas Livres, ensina Direitos Humanos na Escola de Direito da Universidade de Pittsburgh, USA, e é autor do recém-lançado No More War: How the West Violates Law International Law by Using “Humanitarian” Intervention to Advance Economic and Strategic Interests (ainda sem tradução em português). Seus livros podem ser encontrados na Amazon e em outros portais.

Tradução: Blog Translations
Edição: Juliana Medeiros
Para ler o original em inglês: https://www.rt.com/op-ed/518953-western-hemisphere-us-military/

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