Escola Cidadã e Escola Sem Partido

São Paulo - Ato Contra a Reforma no Ensino Médio na Avenida Paulista, região central (Rovena Rosa/Agência Brasil)

Essa conversa de “professor doutrinador” parece a lenda da loira do banheiro: nunca ninguém viu, mas muitos acreditam e temem, brincou Ednéia Gonçalves, provocando risos na grande plateia presente no lançamento do livro A Ideologia do Movimento Escola Sem Partido: 20 autores desmontam o discurso, organizado pela Ação Educativa, nessa quinta (3).

As mais de mil escolas, institutos e universidades ocupadas pelos estudantes, nessa primavera de 2016, dão a dimensão do embate político que está sendo travado no Brasil. De um lado, aqueles que querem cortar o orçamento da educação, que querem inibir a liberdade e pluralidade do ambiente escolar, que querem se apropriar de recursos públicos dirigidos à escola pública e que querem retirar do currículo matérias decisivas na formação de cidadãos. Do outro lado, secundaristas, estudantes universitários, provavelmente a maior parte dos educadores, os progressistas, uma frente, enfim, de luta por uma escola pública de qualidade, acessível a todos e formadora de pensamento crítico.

O projeto Escola Sem Partido (ESP), que tramita no Congresso e em outras casas legislativas do país, insere-se na categoria das ameaças à escola livre e plural. O projeto acusa a escola e seus professores de formadores de “ideologias de partidos de esquerda” e de “ideologia de gênero”, o que quer que isso signifique, e tenta calar as discussões, censurar professores e intimidá-los em seus pontos de vista e opiniões. A verdade, no entanto, é que esse projeto, flagrantemente deseducador, conquistou muitos corações e mentes. Daí a importância de se esmiuçar seu discurso e desmontá-lo. Essa é a proposta do livro que passamos, agora, a descrever.

ideologia-esp

Além de 20 textos e charges, o livro reproduz opiniões de alunos do Ensino Médio da rede estadual de São Paulo, sobre o Projeto ESP. Um exemplo:

“Os alunos dificilmente abaixam a cabeça para os professores, eu acho bem difícil um professor chegar numa sala de terceiro ano e falar, é assim e pronto, não existe. Quem fez o Projeto de Lei Escola sem Partido nunca entrou numa sala de aula.”

Neutralidade

Devo revelar aos alunos a minha capacidade de analisar, de comparar, de avaliar, de decidir, de optar, de romper.” (Paulo Freire)

Os organizadores do livro recorrem a um ensinamento, perfeitamente aplicável ao nosso momento presente, de Paulo Freire, em Pedagogia da autonomia, de 1996, para compor a epígrafe:

“Creio que nunca precisou o professor progressista estar tão advertido quanto hoje, em face da esperteza com que a ideologia dominante insinua a neutralidade da educação. Desse ponto de vista, que é reacionário, o espaço pedagógico, neutro por excelência, é aquele em que se treinam os alunos para práticas apolíticas, como se a maneira humana de estar no mundo fosse ou pudesse ser uma maneira neutra.

Minha presença de professor, que não pode passar despercebida dos alunos na classe e na escola, é uma presença em si política. Enquanto presença, não posso ser uma omissão, mas um sujeito de opções. Devo revelar aos alunos a minha capacidade de analisar, de comparar, de avaliar, de decidir, de optar, de romper. Minha capacidade de fazer justiça, de não falhar à verdade. Ético, por isso mesmo, tem que ser o meu testemunho.”

Racismo

A escola deve sim ter partido, pelos direitos e pela vida digna”

As autoras dessa frase, Ana Lúcia Silva Souza e Ednéia Gonçalves, discutem reeducação nas relações raciais e ESP:

“Situamos o movimento Escola Sem Partido (ESP), entre as iniciativas que, camufladas pelos discursos em defesa de uma noção de família, da manutenção dos “bons costumes” e do cumprimento da lei, propagam, entre outros aspectos, análises distorcidas a respeito da história e cultura africana e afro-brasileira buscando adensar o preconceito racial e a intolerância religiosa.” (p. 139)

Elas descrevem a prática para uma educação antirracista da seguinte forma:

“É na convivência nos núcleos familiares, na rua, no trabalho e na escola – um importante espaço de socialização – que aprendemos sobre nós e sobre os outros. Por meio da interação social, do contato, de conflitos e de negociações, as pessoas se mostram, se conhecem, refletem, aprendem a negociar num exercício constante de diálogo que leva à articulação de saberes, de experiências e à redução das desigualdades, principalmente raciais.” (p. 144)

As autoras narram a reação do blog de olho no livro didático, apoiador do ESP, a uma das lições de português, em que o livro didático busca ensinar acentuação gráfica das palavras oxítonas. Como se pode ver abaixo, a palavra candomblé, oxítona terminada em “e” e por isso acentuada, aparece misturada com muitas outras. O blog insinua tratar-se de “doutrinação para o candomblé” e se apressa em denunciar o que qualifica de “uma estratégia para fazer o aluno acostumar-se com a palavra e também conhecer seu significado.”

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Escola Cidadã

Viver significa tomar partido. Quem verdadeiramente vive não pode deixar de ser cidadão, e partidário. Indiferença é abulia, parasitismo, covardia, não é vida.” (Gramsci)

Moacir Gadotti cita Gramsci ao abrir seu artigo que contrapõe a Escola Cidadã ao Escola Sem Partido. Ele foca a necessidade de a escola ser plural, mas ressalva que pluralismo não é a ausência de opinião:

“O papel do professor não pode ser de um pregador, de um doutrinador. A escola deve ser livre. O ensino deve seu plural. Pluralismo não significa não ter nenhuma opinião, não tomar partido. Significa ter um ponto de vista e dialogar com outros pontos de vista. Quanto mais debate político, quanto mais reflexão crítica, mais de torna possível o equilíbrio e a pluralidade de opiniões.” (p. 157)

Gadotti nos ensina que Paulo Freire definia que “a Escola Cidadã é aquela que se assume como um centro de direitos e de deveres. É uma escola coerente com a liberdade. É uma escola de comunidade, de companheirismo, que vive a experiência tensa da democracia”. (. 1558)

Diversidade e igualdade

Primeiramente, os alunos não são tabula rasa, na qual os professores simplesmente inscrevem suas verdades.” (Maria Virgínia de Freitas)

Segundo Maria Virgínia de Freitas a necessidade de proteção dos jovens assenta-se numa falácia:

“Os jovens trazem consigo suas experiências, seus saberes, seus valores, suas crenças, interagindo com o saber escolar de múltiplas formas, em função inclusive de sua maior ou menor adesão à cultura escolar. Essa interação envolve sempre, também, outros jovens que estão na mesma sala, ou na mesma escola, e o conjunto de seus professores. A sala de aula é um encontro de múltiplos sujeitos, múltiplos saberes e opiniões. As aprendizagens se dão nesse contexto. O professor, mesmo se quiser, não detém esse poder sobre os jovens.”

Ela recorre à letra do Estatuto de Juventude que “reconhece aos jovens o direito à diversidade e à igualdade, e atribui ao poder público a responsabilidade de inclusão de informações sobre discriminações e direitos na sociedade brasileira e temas relacionados à sexualidade, respeitando a diversidade de valores e crenças nos conteúdos curriculares”. (p. 105)

“As relações de gênero e a dimensão da sexualidade costumam provocar grande interesse por parte dos e das jovens, além de angústias e sofrimentos. Se a escola não aborda tais assuntos, a quem os jovens recorrerão? A escola vai abrir mão de cumprir seu papel educativo?” (p. 106)

Gênero

É correto impedir a discussão de gênero como quer o Escola Sem Partido?

Rodrigo Ratier, editor-executivo da revista Nova Escola, propõe em seu artigo 14 perguntas e respostas sobre o “Escola Sem Partido”. Veja parte de sua reposta à questão sobre o acerto de impedir a discussão de gênero, como quer a ESP.

“Esse não é o caminho escolhido por países em que as crianças têm alto desempenho. A Unesco, braço da ONU para a educação, ciência e cultura, reconhece a Educação para a Sexualidade como uma abordagem culturalmente relevante para ensinar sobre sexo e relacionamento de uma forma “cientificamente precisa, realista e sem julgamentos”. E o currículo de vários países vai nessa direção.

O partido da Escola Sem Partido

Enfim, é a velha artimanha da direita: já que não convém mudar a realidade, pode-se acobertá-la com palavras.” (Frei Beto)

Frei Beto aponta em seu artigo que “na verdade, muitos “sem partido” são partidários de ensinar que nascemos todos de Adão e Eva; homossexualidade é doença e pecado (e tem cura!); identidades de gênero é teoria promíscua; e o capitalismo é o melhor dos mundos”.

A história vai girar pra outro lado….” (Um aluno da rede estadual)

Mais um Aluno do Ensino Médio da rede estadual de São Paulo, revela sua opinião sobro o ESP: “Quando você lê o Projeto [Escola sem Partido] parece que não existe aluno, parece que nesse projeto o aluno é um papel em branco e ele não tem autonomia nenhuma, ele não tem nada, o que é muita mentira. Escola sem Partido é um movimento dos pais, então, o aluno não tem nada a ver com isso, são os pais que tem tudo a ver. Mas assim, o que é minha alegria é perceber que com isso eles erram muito e que a história vai girar pra outro lado, isso, os alunos vão ficar mais bravos.”

Notas

1) A Ideologia do Movimento Escola Sem Partido – 20 autores desmontam o discurso / Ação Educativa Assessoria, Pesquisa e Informação (Org.). São Paulo, Ação Educativa, 2016. 165 p.

2) O endereço do blog é http://deolhonolivrodidatico.blogspot.com.br/2016/04/candomble-e-umbanda-em-livros.html, assinado por Orley José da Silva, membro da Assembleia de Deus de Goiânia.

3) Para mais informações sobre o livro, por favor, veja http://www.acaoeducativa.org/index.php/em-acao/53-acontece-na-acao/10005203-2016-10-25-20-45-43

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